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Cultura

Por que ‘Pele negra, máscaras brancas’ deve ser lido por brancos e negros

Primeiro livro de Frantz Fanon foi pioneiro ao se debruçar sobre os efeitos psicológicos do racismo. Agora, ganha nova edição no Brasil
O pensamento de Frantz Fanon (ao centro, de preto) serviu de base para intelectuais brasileiros como Abdias do Nascimento Foto: Reprodução
O pensamento de Frantz Fanon (ao centro, de preto) serviu de base para intelectuais brasileiros como Abdias do Nascimento Foto: Reprodução

RIO — “O negro não é um homem”. A sentença do psiquiatra Frantz Fanon aparece logo na introdução de “Pele negra, máscaras brancas”, seu primeiro livro, publicado em 1952 e pioneiro ao discutir a criação do racismo pelas pessoas brancas e seus impactos na psique humana — tanto dos sujeitos negros quanto dos brancos. Referência para pensadores das Ciências Sociais e da Psicanálise , a obra ganha nova edição no Brasil, pela editora Ubu.

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Nascido na Martinica, então colônia francesa no Caribe, em 1925, Frantz Fanon produziu “Pele negra, máscaras brancas” como seu trabalho de conclusão do curso de Medicina na Universidade de Lyon, na França. Apresentada com o título “Ensaio sobre a desalienação do negro” em 1951, a obra foi reprovada. Segundo Deivison Faustino, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor de dois livros sobre o pensador, a recusa se deu por dois motivos: o formato de ensaio, que fugia aos padrões estabelecidos pela instituição, e a temática.

— Tratar do racismo antinegro no contexto francês soava estranho à academia da época. Havia a ideia de que o racismo sistêmico era um problema dos Estados Unidos, que não estava presente na França. Inclusive, esse pensamento existe até hoje — explica o cientista social, que assina o posfácio da nova edição de “Pele negra”.

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Redescoberto nos anos 1980

Após a rejeição da banca, Fanon produz um segundo trabalho de conclusão de curso, que é aprovado, e publica o primeiro texto no ano seguinte, já com o novo título. “Pele negra, máscaras brancas” passa quase despercebido. Só é redescoberto na década de 1980, com o surgimento dos pensadores pós-coloniais. Mas Fanon não o vê ganhar notoriedade. Havia morrido em 1961, vítima de leucemia, meses depois de publicar “Os condenados da terra” (esgotado no Brasil), seu livro de maior destaque.

No Brasil, “Pele negra” foi publicado pela primeira vez em 2008, apesar de ter embasado obras fundamentais do cânone negro nacional, como “O genocídio do negro brasileiro”, do dramaturgo Abdias do Nascimento (1978) , e “Tornar-se negro”, da psiquiatra Neusa Santos Souza (1983). Para Deivison, a principal contribuição da obra — e motivo de ela ter se tornado um clássico — foi o questionamento sobre os efeitos subjetivos do racismo.

— Até “Pele negra”, a maioria estava pensando o racismo em termos de denúncia de uma dominação colonial, e, talvez, de um certo mal-estar — explica Deivison. — Fanon leva esse debate a outro patamar ao dizer, pela primeira vez, que o racismo atravessa a constitução daquilo que o negro é. Ele é interiorizado como jeito de viver. A partir disso, passa a atravessar também as escolhas, desejos e fantasias de cada um. Ao ler Fanon, pessoas negras conseguem identificar como esse processo acontece com elas.

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Desejo de embranquecer

Entretanto, esses efeitos (que incluem o sentimento de inferioridade dos sujeitos negros e o desejo — consciente ou não — de embranquecer) não se restringem aos negros. Fanon também dá um passo fundamental para pensar o conceito de “branquitude” , ao afirmar que o negro é produto das relações sociais — e, portanto, o branco também o é.

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Dessa forma, para o psiquiatra, o racismo também constitui a subjetividade das pessoas brancas — que devem pensar sobre si mesmas de forma racializada para, assim, reconhecer e minimizar suas próprias práticas racistas.

— Fanon afirma que o negro é criação do branco, que, ao fazê-lo, também cria a si próprio. E se cria como o padrão de humanidade, o homem ideal, como se sua subjetividade não fosse racializada. Mas ela também é. Isso atravessa, por exemplo, a fantasia do branco em relação ao negro, que é visto como um corpo apenas, não como um ser humano. Por isso Fanon afirma que ‘o negro não é um homem’ — destrincha Deivison.

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Uma consequência desse processo é a hipersexualização dos sujeitos negros, fruto de uma visão “animalizada” de seus corpos, por parte das pessoas brancas.

— A tendência disso é a relação conflituosa do desejo: se o outro tem algo que não tenho, eu quero esse “algo” para mim — explica o professor. — Como se vê como menos animal, menos sexual, o branco acaba por hipersexualizar o negro. Ou seja, carrega em sua psique tanto uma imagem distorcida do negro quanto de si mesmo.

Prefácio de Grada Kilomba

Traduzida por Sebastião Nascimento, a nova edição de “Pele negra, máscaras brancas” (336 páginas, R$ 69,90) chega às livrarias com prefácio da escritora portuguesa Grada Kilomba (autora mais vendida da Festa Literária de Paraty de 2019) e textos complementares do ativista Francis Jeanson, do professor de Harvard Homi K. Bhabha e do historiador Paul Gilroy. No catálogo da Ubu, a obra se reúne a outro título de Fanon publicado este ano: a compilação “Alienação e liberdade - Escritos psiquiátricos” (400 páginas, R$ 79,90).

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Para além da discussão sobre os impactos psicológicos do racismo, “Pele negra” também oferece contribuições para pensar questões como o radicalismo político. No livro, o psiquiatra disserta sobre o que chama de “dimensão afetiva da política”, isto é, o modo como as escolhas políticas são marcadas por processos não racionais.

— A partir disso, podemos pensar o quanto certos grupos têm sido mobilizados por ressentimentos e fantasias, por exemplo — afirma Deivison. — Por outro lado, Fanon chama a atenção para a dimensão política do afeto. Isso significa que outras contradições sociais também atravessam o sofrimento psíquico: o patriarcado, o capitalismo, e assim por diante. Mas ele ressalta que, embora devamos levar o contexto em conta, não se pode reduzir o sujeito a ele. Uma pessoa negra não é apenas uma vítima do racismo, por exemplo.

A capa da nova edição de 'Pele negra, máscaras brancas', lançada pela Ubu Foto: Divulgação
A capa da nova edição de 'Pele negra, máscaras brancas', lançada pela Ubu Foto: Divulgação

Serviço:

"Pele negra, máscaras brancas"

Autor: Frantz Fanon. Tradução : Sebastião Nascimento. Editora: Ubu. Páginas: 366. Preço: R$ 69,90.