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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Um Jaguar Auxiliar: índios e cães na Amazônia indígena Paulo Büll 2018 1 Um Jaguar Auxiliar índios e cães na Amazônia indígena Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, PPGAS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Orientador: Carlos Fausto Co-orientador: Luiz Costa Rio de Janeiro, Fevereiro de 2018 2 Um Jaguar Auxiliar: índios e cães na Amazônia indígena Paulo Büll Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Aprovada por: Carlos Fausto (orientador) PPGAS/MN – UFRJ Luiz Costa (co-orientador) PPGSA - UFRJ Aparecida Vilaça PPGAS/MN - UFRJ Felipe Ferreira Vander Velden PPGSA - UFSCar 3 Ficha catalográfica 4 Em memória de Antonio e Olivio, pelas forças que me transmitem Para Marcelo e Marta, pelo alicerce sem o qual nada seria possível 5 Agradecimentos Esta dissertação contém um pouco de cada um daqueles que me auxiliaram durante esta jornada. Em primeiro lugar, agradeço ao meu orientador, Carlos Fausto, pelo apoio e dedicação à minha trajetória enquanto aluno e pesquisador. Não fosse pela sua atenção em todas as etapas da pesquisa, e por toda inspiração que sua pessoa transmite, nossa pesquisa -- que se iniciou ainda em 2014 -- não teria resultado nesse trabalho. A Luiz Costa, meu co-orientador, o agradeço por ter sido o professor que, além de despertar o meu entusiasmo pela antropologia, permanece sendo desde o dia que o conheci um exemplo a ser seguido. Ter sido aluno e orientando de vocês é um privilégio que escapa dos muros da universidade. Agradeço ao CNPq pelos auxílios concedidos desde a graduação, e à Capes pela bolsa que me permitiu dedicação integral ao Mestrado. Aos funcionários da secretaria e biblioteca do IFCS e do PPGAS, agradeço por toda solicitude. Bruno e Danielle, no IFCS, e Anderson e Márcio, no PPGAS, foram pessoas especialmente importantes para que este trabalho pudesse ser concluído. Expresso minha gratidão também aos professores que contribuíram para a minha formação e, consequentemente, para o desenvolvimento deste trabalho. No IFCS, especialmente os professores da etnologia, Luiz Costa, Marco Antônio Gonçalves, Cesar Gordon, Els Lagrou e Maria Barroso muito contribuíram para que a minha trajetória acadêmica se mantivesse na direção da antropologia. No PPGAS, as relações que cultivei com o corpo docente em geral também foram fundamentais para a minha formação. A Luiz Fernando Dias Duarte e Edmundo Pereira agradeço pelas aulas de Teoria Antropológica, e a Carlos Fausto, Aparecida Vilaça e Eduardo Viveiros de Castro, especialmente, agradeço por todas as discussões e por tudo o que aprendi em seus cursos de etnologia. Essa dissertação é fruto de um trabalho coletivo, e por isso registro aqui os meus agradecimentos a todos os pesquisadores que responderam o questionário sobre o tema do qual essa dissertação trata. Minha gratidão a: Cesar Gordon, Ana Paula Lima Rodgers, Luiz Costa, Marc Brightman, Maria Luisa Lucas, Caco Xavier, Oiara Bonilla, Armindo Goes Yanomami, Bruno Guimarães, Joana Miller, Virginia Amaral, Jean-Pierre Goulard, Ruben Caixeta, William Balee, Esther Jean Matteson Langdon, 6 Suzanne Oakdale, Fernando Santos-Granero, Magnus Course, Iori Linke, Cecilia McCallum, Luisa Elvira Belaúnde, Sylvia Cayubi e Emmanuel de Vienne. Além dos pesquisadores mencionados acima, agradeço a Felipe Vander Velden, Diego Villar e Peter Mitchell pelos diálogos que travamos sobre os cães na Amazônia, e especialmente aos dois primeiros também agradeço pelos comentários que recebi quando lhes apresentei versões de textos que escrevi ainda na Iniciação Científica. Desde quando entrei na universidade, fiz amizades com as quais pude compartilhar muitas das minhas inquietações de pesquisa e, por que não, de vida. Hugo, Lucas, Leandro e Pedro são grandes inspirações que tive o privilégio de conhecer no IFCS, e me orgulho muito de tê-los como amigos; Déborah, Tiago, Carlos Eduardo, Rebeca, Clarissa, Léo, Gustavo e Welio são amigos da Faculdade Nacional de Direito com os quais muito aprendo, e lhes agradeço pelo apoio nesta reta final; a todos da minha turma de mestrado, agradeço por tudo o que aprendemos um com o outro e, sobretudo, pelos momentos de angústias compartilhadas. Fora dos muros da universidade, agradeço àqueles que, no Rio, sempre me proporcionaram laços de amizade muito sólidos. Clara Brandão, Clara Wardi, Vinicius, Chico, Bruno, Erika, Ana Lidia, Antonio, Raquel, Amanda, Ceci e Luiz Paulo são pessoas com quem compartilhei muitos momentos de felicidade durante os últimos dois anos. Jan, Renato, Leandro e João são amigos sem os quais a minha permanência na cidade talvez fosse insustentável, e lhes agradeço muito pelo acolhimento (físico e de alma) que recebi de vocês. A João, especialmente, agradeço pela leitura de um dos capítulos dessa dissertação e pelas discussões antropológicas sempre muito enriquecedoras. Agradeço também a Aimée e Rodrigo pela amizade tão sincera, e a Bruna por tudo que me fez aprender. Em Araras, minha cidade natal, sempre carreguei boas lembranças das pessoas com quem cresci, e agradeço por muitos de vocês estarem de braços abertos quando volto pra reencontrá-los: André, Guilherme, Brufato, Léo, Francisco, Pedro, Rafael e Vinicius, obrigado. Aos antigos colegas de INSA, especialmente José Vitor, Luiz Paulo, Vitor e Marina, agradeço por toda a história de amizade que construímos juntos. A Dayane, Jurrene e Carolina, agradeço pelos momentos que tivemos juntos e por todo o sentimento que compartilhamos. Finalizo os meus agradecimentos com a tarefa, praticamente impossível, de colocar em palavras a minha gratidão à minha família. Agradeço aos meus avôs 7 Olivio e Antonio, por guardarem em mim lembranças maravilhosas, e às minhas avós, Maria Helena e Ermelinda, por me apoiarem com a força que cada uma de vocês têm. A Marcela, minha irmã mais velha, eu lhe agradeço por todo o apoio que me concedeu quando me mudei para o Rio, e por todos os anos de aprendizado enquanto dividimos morada; e a Mariana, minha irmã mais nova, eu lhe agradeço por ter comigo a mais singela relação de afeto e carinho. Vocês duas me ensinam todos os dias a me tornar uma pessoa melhor. Esta dissertação é pra vocês. Aos meus pais, Marta e Marcelo, nada do que eu escreva aqui será suficiente para mensurar a minha gratidão. Sem vocês nada seria possível -- pelo simples fato de que, sem vocês, nada teria sentido. Vocês dois são tudo pra mim, e esse trabalho é por vocês. 8 Resumo Os cães foram introduzidos nos grupos indígenas amazônicos pelos brancos na Conquista e, desde então, têm sido uma presença constante nas aldeias da região. Com sua rápida dispersão pelas Terras Baixas da América do Sul, hoje é raro encontrar um grupo que não estabeleça relações com o animal. Mesmo que viajantes e cronistas – e posteriormente alguns antropólogos – tenham relatado algumas das funções assumidas pelo animal nas aldeias, as relações entre índios e cães na Amazônia indígena passaram despercebidas na maioria das etnografias. Não obstante, muitos pesquisadores tiveram impressões e experiências etnográficas pertinentes acerca deste tema. Nesse sentido, com base em dados levantados em entrevistas com diversos americanistas, e também a partir de fontes secundárias, procuro nesta dissertação sanar parte desta lacuna na etnologia amazônica. No decorrer deste trabalho, deter-me-ei aos processos de introdução dos cães nas Terras Baixas, e abordarei também a forma pela qual o animal é concebido, tratado e alimentado pelos índios da região. Por fim, trataremos das técnicas por meio das quais esses animais exógenos se tornam aptos a participarem da caça e a predarem outros animais. Diferentemente do que se encontra em relação aos animais familiarizados (xerimbabos) ou domésticos (como galinhas), no caso dos cães é preciso produzir um animal auxiliar ou, em outras palavras, um animal cujo potencial predatório, por ser disputado pelos inimigos, deve ser atraído e utilizado a favor dos humanos-parentes. 9 Abstract Dogs were introduced into Indigenous Amazonian groups by the whites during the Conquest of the Americas, and they have since been ubiquitous in the region’s villages. Having quickly spread throughout the South American lowlands, there are few groups which have not established relations with dogs. Even though early travellers and chroniclers – and, later, a few anthropologists – have reported on the role of these animals in villages, the relations between Indians and dogs remains understudied. However, many researchers have informally recorded ethnographic experiences on the theme. Relying on data obtained through interviews with various ethnographers of lowland South America, and also on secondary sources, this dissertation seeks to address this gap in Amazonian ethnology. First, I will focus on the processes that led to the introduction of the dog in the lowlands, and on how the animal is conceived, treated and fed by Amerindian people. Lastly, I will turn to the techniques through which these foreign animals are qualified for hunting and predatory activity. Contrary to what has been described for familiarized pets or (other) domesticated animals (such as chickens), it is necessary to produce dogs as auxiliary animals, or, in other words, as animals whose predatory potential, desired by enemies, is put in the service of human-kinspeople. 10 SUMÁRIO Introdução 13 “Animais demais” na etnologia amazônica 16 “Cães demais” na Amazônia e adjacências 20 A dissertação 24 Capítulo 1. Os cães na Amazônia: introdução e disseminação 27 1.1 A Conquista espanhola e os cães 28 1.2 Introdução dos cães na Amazônia: antes ou depois da Conquista? 33 1.3. Depois da Conquista: o processo de introdução dos cães nas aldeias indígenas da Amazônia 38 1.4 Redes de intercâmbio e disseminação dos cães na Amazônia 42 1.5 Considerações finais 49 Capítulo 2. “Um jaguar que você alimenta” 52 2.1 A concepção dos cães: de excêntricos a associais 52 2.2 A alimentação dos cães 54 2.2.1. Teorizações da alimentação na antropologia e na etnologia 54 2.2.2 A alimentação dos cães na Amazônia 57 2.3 O tratamento dos cães: entre desprezo e cuidados 59 2.4: Cuidados e controles: os cães e seus mestres 65 2.5 Da dependência ao controle: considerações finais 69 Capítulo 3: De nomes e corpos 73 3.1.1 Nomes e nominações 73 3.1.2 Os cães e seus nomes próprios 77 3.1.3 – Os termos para a(s) espécie(s): cães e onças 80 3.2 A caça na Amazônia: modo de subsistência e o modelo da predação 82 3.3 A caça com cães nas terras baixas da América do Sul 87 3.4 Rituais e técnicas: preparações para a caça 93 3.5 Considerações finais 99 11 4.0 Conclusão. Identidade-jaguar, identidade cão: sobre os cães na Amazônia indígena? 106 Referências bibiográficas 112 12 Introdução: Em dezembro de 1938, ao final de uma carta destinada a Curt Nimuendaju, Robert Lowie perguntava ao etnólogo alemão sobre a situação dos cães entre os grupos indígenas de língua Jê: “Mais uma pergunta. Como está a existência do cachorro entre os Jê? (...) o cão está tão entrelaçado com o modo de viver dos Ona1 que não se pode imaginar esta tribo sem o animal” (Welper, n.p.). Um mês depois, em resposta a Lowie, Nimuendaju dizia: Quanto a sua pergunta pela originalidade do cachorro nos Jê: Quando fizemos em 1912 as pazes com os Kaingang selvagens em São Paulo, eles não conheciam cachorros. Os Apinayé dizem que somente tivessem-nos recebidos pelos neobrasileiros. Os Apinayé-Canellas e os Kreyé do Bacabal parecem ter captado -- e nisso imaginem aparentemente Speothos venaticus Lund -- os filhotes de cachorros selvagens. Segundo a lenda dos primeiros aconteceu isto na terra da tribo amazonense dos Kupe-tia-yapre, mas não prestam informações sobre lugares. Todas as tribos Jê mantêm cachorros muito mais como companhia de casa do que para a caça. Importância econômica eles não têm em lugar algum. Mesmo assim, parece que o animal é de origem pré-colombiana (Welper, n.p.). As cartas trocadas entre os dois etnógrafos evidenciam três aspectos interessantes acerca da relação entre humanos e cães na Amazônia, que é o tema dessa dissertação. O primeiro aspecto, que se depreende da menção de Lowie à relevância do animal entre um grupo Jê, diz respeito à surpresa de muitos etnógrafos ao se depararem com cães em seus trabalhos de campo: os cães estão presentes na maioria das aldeias indígenas da região amazônica, e diferentemente dos cães domésticos urbanos, em muitos grupos eles atuam como auxiliares dos humanos, tanto na floresta (como ajudante dos caçadores) quanto no ambiente doméstico (como protetores das 1 Os Ona são um grupo nativo norte-americano com o qual Robert Lowie tinha familiaridade. 13 casas e da aldeia em geral). Este fenômeno da presença e relevância do animal é constatado não só pelas etnografias recentes, mas também pelos relatos históricos dos cronistas. O jesuíta italiano Filippo Salvatore Gilii, no final do século XVIII, dizia sobre grupos localizados na região das Guianas e do Orinoco que “todas las naciones (...) tienen perros por médio del comercio de unos com otros, y hacen suma estima de ellos, tanto para la caza como para la centinela de noche” (1965 [1782]: 192). Embora esta presença e relevância tenham chamado a atenção de muitos pesquisadores e viajantes, poucos foram aqueles que realmente realizaram uma análise propriamente etnográfica sobre a relação dos índios amazônicos com seus cães. A carta de Nimuendaju também expressa este fato bastante recorrente. Mesmo Nimuendaju, cuja dedicação ao trabalho de campo ultrapassa quatro décadas, restringiu a sua análise sobre os cães, até onde sei, a verbetes sobre os Sateré-Mawé e os Apinayé (1948: 247). Nestes verbetes, o autor apenas menciona a presença do animal e sua importância como auxiliar dos caçadores. A análise mais detalhada sobre a situação do animal, como vimos, está confinada à informalidade de uma carta pessoal. O segundo ponto ressaltado por Lowie e Nimuendaju, e que vale a pena ser destacado aqui, diz respeito à questão da origem dos cães. Lowie diz que “ninguém sabe de onde advém o empréstimo de cães” (Welper, n.p.), e Nimuendaju, por seu turno, mostra que em alguns grupos, como entre os Apinayé, os cães encontrados parecem ser de espécie nativa, isto é, de origem pré-colombiana. Esta questão da origem dos cães perpassará, por muito tempo, o imaginário dos poucos pesquisadores que se debruçaram sobre o tema nas Terras Baixas da América do Sul2, e esta também será uma questão a ser analisada nesta dissertação. Por fim, o último aspecto que gostaria de ressaltar nessa correspondência entre Lowie e Nimuendaju é a sua informalidade, que se assemelha, em muito, às fontes dos dados a partir dos quais esta dissertação foi escrita. Muito do que será exposto aqui deriva de respostas a um questionário, o qual foi enviado a pesquisadores americanistas e respondido de acordo com as impressões etnográficas a respeito dos cães entre os grupos pesquisados por eles. Escolhido como método em função da escassez e da dispersão dos dados nas etnografias publicadas, este questionário foi formulado para obter informações sobre os seguinte pontos: o termo pelo qual os cães 2 Doravante, utilizarei também a abreviação TBAS, ou simplesmente Terras Baixas, quando estiver mencionando a região das terras baixas sulamericanas. 14 são designados, bem como o significado e/ou a origem deste termo; se os cães recebem nomes pessoais, e se sim, de onde vêm estes nomes (se são nomes semelhantes aos dos humanos, etc.); se são alimentados, e se sim, que tipo de comida recebem; se existe diferença de gênero na decisão de quem é o dono do cão, e como esta relação de domínio é designada; se os cães são enterrados, e se sim, como; se participam ativamente na caça, e se existe alguma técnica para desenvolver a habilidade predatória do cão; se existem diferenças no tratamento de filhotes e de cães adultos; e, por fim, como os cães são tratados de um modo geral. Uma tabela com todos os pesquisadores que responderam ao questionário consta a seguir: Termo para cão Povo Língua Região do grupo Fonte (comunicação pessoal) Rop Ehõla, Ehõlanase ou kaxolo Xikrin - Mebengokre Jê Pará Cesar Gordon Enawene Nawe Aruak Noroeste do Mato Grosso Ana Paula Lima Rodgers Wa'pa Kanamari Katukina Amazônia Ocidental Luiz Costa Kaikui ou Jimuku Trio Karib Hixkariana Karib Sul do Suriname Rio Nhamundá e rio Jatapu, Norte Amazônico Marc Brightman Kaykusu Tsiino Koripako Aruak Alto Içana, fronteira com Colômbia Caco Xavier Jomahi Paumari Arawá Rio Purus Oiara Bonilla Hĩima a Yanomami (Xamathari) Yanomami Norte amazônico Armindo Goes Yanomami Rop - Canela Apanjekra (Timbira) Jê Maranhão Bruno Guimarães Cachoriru Nambiquara (Mamaindê) Nambikwára Mato Grosso Joana Miller Arimaraka Ingarikó Karib Roraima e Guiana Virginia Amaral Airu Tikuna Tikuna Rio solimões Jean-Pierre Goulard Xapari Waiwai Karib Amazonas e Roraima Ruben Caixeta Yawar Ka'apor Tupi-Guarani Maranhão e Pará Wë'e yai Siona Tukano Tukano Colômbia, Rio Uapés William Balee Esther Jean Matteson Langdon Kasuru Kawaiwete (Kaiabi) Tupi-Guarani Parque Nacional Xingu Suzanne Oakdale Ochec Yanesha Arawak Leste Peru Fernando Santos-Granero Trewa Mapuche Mapudungun Chile Magnus Course Kaikui Wayana Karib Guiana, Suriname e Amapá Iori Linke Kaman (Kamã) Cashinauá Pano Acre e Peru Cecilia Mccallum Joya Yai Airo Pai (Seocya) Tukano Tukano Peru, Colômbia e Equador Luisa Elvira Belaúnde Arigao Bororo Bororo Mato Grosso Sylvia Cayubi Kasoro Trumai Trumái Mato Grosso Emmanuel de Vienne Maria Luisa Lucas Ainda que limitadas e dispersas, as informações contidas nas etnografias e nos relatos de cronistas também serão objeto de análise no decorrer desta dissertação3. 3 Este trabalho de garimpagem dos dados, além das análises sobre as respostas ao questionário, iniciaram-se ainda em 2014, quando iniciei meus estudos na etnologia no âmbito de um projeto sobre as relações de maestria na Amazônia indígena, o qual era coordenado por Carlos Fausto. Desde então, 15 Para tanto, foi necessário um trabalho minucioso de coleta de dados bibliográficos, pois, como já indicamos, a relação dos índios com os cães não recebeu atenção correspondente à sua considerável presença e relevância nas aldeias. Como veremos, ademais, a falta de interesse pelos cães é paralela à baixa atenção que a etnologia amazônica dedicou às relações com os animais domésticos, em geral. “Animais demais” na etnologia amazônica A maioria das monografias sobre povos indígenas amazônicos, desde a década de 1960, pouco atentou à presença constante dos animais domésticos nas aldeias da região. Como mostra Vander Velden em Inquietas Companhias, os animais domésticos costumavam ser apenas brevemente mencionados nas etnografias, e, no mais das vezes, “como um item de menor importância nas descrições sobre a paisagem das aldeias e o dia-a-dia das pessoas” (2010: 22). Com efeito, salvo raras exceções, o tema da relação entre humanos e animais domésticos (ou familiarizados) permaneceu periférico na etnologia amazônica. Nos últimos anos, porém, o tema tem despertado renovado interesse na disciplina. Como diz Philippe Erikson, em cujo artigo me inspirei para nomear esta seção, o tema da relação humano-animal na Amazônia “parece ter conhecido recentemente uma retomada de interesse (...) teses foram consagradas ao assunto, novas hipóteses foram formuladas e novos dados produzidos, tudo chamando ao debate” (Erikson, 2011: 16, referências suprimidas). Há, no entanto, a necessidade de distinguirmos o tema da relação humanoanimal em geral e o tema da relação humano-animal doméstico. Grande parte do arcabouço etnográfico e teórico sobre os grupos indígenas amazônicos faz referência aos animais e, por isso, dizer que o tema da relação humano-animal não esteve em foco na etnologia amazônica seria incorreto. As próprias Mitológicas de Lévi-Strauss, como diz Vander Velden, nos ensina que “conhecer detalhadamente os animais é tarefa fundamental para a compreensão profunda das cosmologias indígenas nas terras baixas da América meridional” (2010: 30). O mesmo pode ser dito a respeito dos modelos teóricos como o perspectivismo (Viveiros de Castro, 1996), o animismo (Descola, 2002) ou a predação familiarizante (Fausto, 1999), os quais se erigem sobre uma distinção entre humanidade e animalidade e que privilegiam em suas abordagens as relações entre estes domínios. Mas, embora desses modelos não sejam venho coletando esses dados e reunindo referências sobre os temas que serão apresentados nesta dissertação. 16 automaticamente extraídas informações acerca das interações cotidianas entre humanos e animais, especialmente os domésticos e de criação4, não se deve ignorar a importância do tema relação humano-animal na etnologia amazônica em geral. Nesse sentido, embora não tenham se aprofundado nas interações concretas entre humanos e animais, o modelos teóricos supracitados têm muito a oferecer às etnografias recentes que se dedicam especialmente às relações entre humanos e animais domésticos. E o inverso também é válido: as relações cotidianas podem fornecer dados etnográficos interessantes aos modelos teóricos. Ao resenhar uma coletânea de artigos que compara o animismo no Sudeste Asiático ao perspectivismo na Amazônia, Vander Velden mostra como pode ser produtiva a ênfase em (...) um animismo menos ‘cerebral’, mais centrado nas interações reais entre grupos humanos e os mundos que habitam e mais sensível às contingências cotidianas ou históricas, sejam de ínfima ou de longuíssima duração” (2017: 321). Apesar de periférico, o tema específico da relação entre humanos e animais não era inexistente na etnologia amazônica. E se hoje há um aumento do interesse por ele, muito se deve às exceções que alçaram os animais em um patamar etnograficamente relevante. Os primeiro trabalhos sobre povos das Terras Baixas da América do Sul cujo tema central era a relação entre humanos e animais foram realizados por Philippe Erikson ao longo da década de 1980. Como o próprio autor diz, este foi o primeiro momento no qual os processos de familiarização de animais tiveram o devido realce na literatura, dada a recorrência deste fenômeno que transcendia limites linguísticos e/ou regionais (2012: 15). Erikson propôs um enfoque na questão da “catividade” no universo amazônico e, para tanto, privilegiou o registro das relações humano-animal, chamando atenção para um certo “desconforto conceitual” engendrado pela prática da caça, sobre o qual falaremos mais a seguir. Apenas depois da virada do século foram produzidas novas monografias sobre o tema. Uma delas é a monografia supracitada de Felipe Vander Velden, que discutiu temas canônicos da etnologia ameríndia (como gênero, parentesco, caça, entre outros) 4 Em relação à distinção entre animais domésticos e familiarizados, estou utilizando como vocabulário conceitual aquele desenvolvido por Vander Velden. Em sua etnografia, o autor propõe como categoria genérica a de animais de criação, a qual, ao menos no caso dos Karitiana, abarca tanto os animais domésticos (pets) quanto os animais familiarizados ou xerimbabos (wild pets) (2010: 111). 17 em função dos animais presentes no cotidiano dos Karitiana, grupo indígena localizado na região da Amazônia ocidental 5 . Utilizando o termo “animais de criação”, Vander Velden discutiu sobre a relação com os animais na etnologia amazônica e problematizou a ideia segundo a qual a domesticação de animais é um passo que os índios das Terras Baixas da América do Sul se rejeitaram a dar (ver Descola, 1994; 2002). Baseando-se nos argumento de Ingold (2000: 77-88), o autor mostra como a oposição entre animal de caça, animal domesticado (pet) e animal familiarizado (wild pet) deveria ser reconsiderada de acordo com critérios etnográficos que escapam à definição estrita de domesticação. Este debate sobre a domesticação de animais na Amazônia está atrelado à discussão sobre a origem dos cães localizados na Amazônia, sobre a qual se detiveram Lowie e Nimuendaju nas cartas mencionadas acima. No artigo supracitado de Descola, no qual o autor responde à pergunta sobre o por quê dos índios não terem domesticado o pecari, seu argumento é construído com base na diferença entre a relação dos índios com os animais nativos e os de origem exógena, como os cães. Se, por um lado, os animais autóctones não foram domesticados na Amazônia porque isto exigiria uma “reorientação completa de princípios estruturais que governam os sistemas sociológicos e cosmológicos” (2002: 108), por outro lado, os animais trazidos pelos europeus foram familiarizados pois isto implicava a adoção de todo um “pacote tecnológico”. Em outras palavras, a introdução de animais europeus instaurou um uma configuração inédita das relações entre humanos e não-humanos nas sociedades indígenas (Descola, 2002). Contudo, um enfoque nas relações cotidianas dos índios com os animais e o emprego deles em diversas atividades (na caça, nas trocas comerciais, etc.), poderiam sugerir outras respostas à pergunta de “por que os índios na Amazônia não domesticaram o pecari” (Vander Velden, 2012: 111). A perspectiva adotada por Vander Velden acendeu o interesse da etnologia pela relação dos índios amazônicos com os animais domésticos, os quais -- cabe-nos relembrar -estão presentes na maioria das aldeias da região. E o caso dos cães, objeto específico deste trabalho, está longe de ser diferente. Pelo contrário, e como já notado, ele parece ser prototípico tanto no que diz respeito à sua constante e crescente presença nas aldeias, quanto à sua pouca presença (ou relevância) nas etnografias. 5 A outra monografia, de autoria de Loreta Cormier, discute a relação dos Awá-Guajá com seus macacos de estimação (2003). Há, também, a monografia de Cinthia Kagan, que trata justamente dos cães entre os Pitaguary, grupo localizado no Ceará (2005). 18 Afora a discussão a respeito da domesticação na Amazônia, os trabalhos dedicados ao tema da relação entre humanos e animais domésticos nem sempre se utilizaram do mesmo vocabulário conceitual. Em seu artigo de 1987, Erikson aborda a familiarização segundo o problema do desconforto engendrado pela atividade predatória. A resolução deste "mal estar", bem como o restabelecimento do princípio da reciprocidade, se dá no momento em que o filhote do animal caçado é capturado e oferecido pelo caçador à sua mulher, tornando-se um animal familiar. Vindos do exterior, tais animais são considerados um contrapeso semântico da caça (id: 20). Já a diferenciação entre pets e wild pets, desenvolvida por Vander Velden em sua etnografia, retoma a diferenciação entre xerimbabos6 e animais domésticos, a qual foi proposta por Carlos Fausto (1999; 2001). Ao tecer o modelo da predação familiarizante, no qual sujeitos são produzidos no interior do grupo a partir de sua captura no exterior, o autor mostra como a operação implica uma dialética: a familiarização gera a transformação da presa em xerimbabo, assim como do afim em consanguíneo (2001: 540). Em outras palavras, a familiarização é concebida por Fausto como o momento no qual a relação matador-vítima se converte na relação senhor-xerimbabo. A relação entre humanos e cães na Amazônia pode ser pensada a partir desse instrumental teórico apresentado acima, mas algumas inflexões são necessárias. A mais evidente é a diferenciação entre os cães e os demais xerimbabos. Os cães não são um “contrapeso semântico da caça” (tal qual a definição de Erikson, 2012), já que participam da própria atividade cinegética; e, além disso, os cães não são associados negativamente na “escala dos seres”, tais quais os outros animais familiarizados de “baixa potência criativa” (Fausto, 2001: 537)7. Pelo contrário, os cães são seres dotados de alta potência criativa, por participarem ativamente da caça. Ademais, diferentemente da adoção-familiarização de outros animais, no caso dos cães é preciso produzir um animal ao mesmo tempo familiar e capaz de violência predatória. Tal qual, aliás, é o caso dos auxiliares dos xamãs entre os Parakanã. Segundo Fausto, a relação é também sempre ambivalente, 6 Dal Poz talvez tenha sido o primeiro autor a utilizar o termo “xerimbabo”, quando descreveu, em 1993, sobre a relação entre os humanos, animais e inimigos entre os Cinta Larga. Fausto, por sua vez, traduziu o termo “xerimbabo” por “wild pet”. 7 Entre os Parakanã, o termo designado aos animais familiarizados (te’omawa) deriva de –te’omam, cujo significado é “não ter poder algum”. Segundo Fausto, o pet é um ser que carece de potência, ao deixar-se dominar pela perspectiva do outro, tornando-se seu aliado (1990: 940). 19 (...) pois não se pode neutralizar inteiramente a potência subjetiva do outro. Em sua ambiguidade, ela projeta o espectro da predação sobre o interior: o outro inteiramente controlado, completamente alienado e domesticado de nada seve. Para serem poderosos, xamãs e guerreiros não podem jamais controlar inteiramente seus xerimbabos (Fausto, 2001: 541). Tendo como base os meus dados, pretendo me aproveitar do instrumental fornecido pelos modelos teóricos para compreender as interações entre os humanos e os cães na Amazônia, em primeiro lugar, mas também, e não menos importante, para demonstrar se de fato esses modelos funcionam para pensarmos o caso proposto. Em termos mais concretos, o que me motiva é pensar se, ou como, os cães -- enquanto predadores auxiliares dos humanos, controlados por um dono e familiarizados no ambiente doméstico -- podem ser compreendidos à luz das categorias e do aparato conceitual mobilizado pela etnologia amazônica nas últimas décadas. Em Fausto, por exemplo, a predação é um ato subjugante (isto é, assimétrico) por meio do qual se define quem detém o ponto de vista na relação (2001: 538). Nessa atividade, quem possui um surplus de subjetividade e agência exerce potencialmente o domínio do ponto de vista alheio e, com isso, assume a -- reversível -- posição de controle. Já no modelo do perspectivismo (1996; 2004), por sua vez, a luta predatória de perspectivas envolve tentativas de afirmar a própria humanidade -- dada a agentividade de cada pessoa deítica -- como um sujeito que percebe (predador) em vez de um objeto de percepção (presa). Até que ponto esses modelos nos servem? Tentarei responder essa pergunta no decorrer desta dissertação. “Cães demais” na Amazônia e adjacências Provavelmente, o cão foi o primeiro animal a se tornar membro da sociedade humana, como mostra Serpell (1996) em sua análise sobre os processos de domesticação de animais mundo afora. No continente americano, como veremos no primeiro capítulo desta dissertação, a difusão dos cães autóctones entre grupos nativos no período anterior à Conquista é ampla: há evidências genéticas e arqueológicas que apontam como, mesmo antes da chegada dos colonizadores, o animal esteve presente na região da América do Norte, México e Caribe (Schwartz, 1997: 40). Em relação às 20 Terras Baixas da América do Sul, no entanto, a questão da distribuição do animal é mais espinhosa, mesmo que existam evidências segundo as quais os cães estiveram presentes nas regiões meridionais do continente, bem como na região circumcaribenha e nas Guianas (Vander Velden, 2009: 4). Especificamente em relação à Amazônia, os autores que se debruçaram sobre a questão da origem dos cães domésticos nas TBAS reconhecem que o animal não existia em toda a região antes da chegada dos europeus. Alguns, contudo, afirmam que, em certas regiões específicas, há evidências da presença de cães domésticos mesmo antes da colonização europeia. Marion Schwartz, autora de History of dogs in Early America, baseia-se na existência de palavras nativas para os cães e sugere que, pelo menos nas regiões onde há este léxico específico, o animal já se encontrava presente antes da Conquista (1997: 40). Felipe Vander Velden, por sua vez, pauta-se na sugestão de Schwartz para afirmar que havia cães domésticos nas "ilhas do Caribe, na região das Guianas e na bacia do Orinoco antes da chegada dos europeus" (2010: 39). Embora as evidências levantadas por Schwartz e corroboradas por Vander Velden possam ser questionadas8, o que nos importa é que a existência de cães domésticos nas terras baixas sulamericanas só pode ser datada com precisão a partir de 1492. Isso é o que ressalta Peter Mitchell em seu recente trabalho sobre a disseminação e extinção de cães na América do Sul: their [the dogs’] existence elsewhere in lowland South America is much more debatable and, although poor bone preservation must obviously be taken into account, ‘the apparent paucity of iconographic evidence of dogs in the region is noteworthy’. Moreover, neither historical nor ethnographic accounts support dogs being in Amazonia, except perhaps on the ‘margins of the vast rainforest’ before European settlement (Mitchell, 2017: 313). Em virtude da carência de dados arqueológicos primários, não tenho como objetivo nesta dissertação tomar posição a respeito deste debate sobre a origem dos cães presentes na Amazônia. Apesar disso, creio que posso contribuir a ele, falando 8 Em seu livro, Schwartz se baseia nos termos nativos explicitados nas crônicas dos séculos XVI e XVII. Porém, a falta de conhecimento profundo dos viajantes da época, e da própria autora, fragilizam a hipótese segundo a qual os termos encontrados revelam a presença de espécies de cães domésticos em certas regiões da Amazônia (1997: 40; ver também Mitchell, 2017; Stahl, 2013). 21 sobre as relações dos índios amazônicos com os cães. Como mostra o próprio Peter Mitchell, um melhor entendimento sobre “the circumstances in which some Amazonian groups have accepted dogs in recent times would also be informative” no debate acerca da origem dos cães na região (idem: 337). Tendo isso me mente, vale notar que alguns autores produziram passagens interessantes sobre cães e índios na Amazônia, sem que o tema principal fosse esta relação ou a discussão sobre sua origem pré ou pós-colombiana. Assim, Philippe Descola, falando sobre os Achuar, grupo Jívaro da Amazônia equatoriana e peruana, detalha um aspecto importante, também notado por outros etnógrafos, a saber, a forma ambígua pela qual o cão é concebido e tratado na região amazônica. Segundo o autor, os cães são vistos pelos Achuar como seres que violam regras básicas da socialidade. Assim como os “monsters”, os cães são “animals that enjoy sexual promiscuity and so constantly reject the principle of exogamy” (2013: 7; ver também 1998: 27). Além disso, eles carecem de discriminação alimentar, já que se alimentam de todos os tipos de dejetos, inclusive excrementos (2006: 111). Ao mesmo tempo, os cães são valorizados por suas habilidades cinegéticas, e esta valorização se explicita nos cantos anent, os quais são entoados pelas mulheres achuar. Segundo Descola (idem: 109), estes cantos suscitam no cão a prevenção de doenças e possíveis ferimentos, além de incitar as capacidades de caça do animal. Mesmo que concebidos como seres associais, os cães entre os Achuar são cuidados e alimentados. Esta ambiguidade não se encontra apenas entre os Achuar, mas está presente em muitos outros grupos indígenas da região: os cães são companheiros na caça, treinados para exercer tal atividade e cuidados especialmente quando filhotes; ao mesmo tempo, são comumente maltratados no cotidiano. Em geral, como indica Uirá Garcia (2010: 292) os cães são "curiosos" animais de criação, pois são parte vital da atividade cinegética e valorizados por isso, mas são também muito ‘reprimidos’ no ambiente doméstico. Nas palavras do autor, "na aldeia os cães são tratados sob forte repressão, seus latidos abafados e seus rompantes de raiva interrompidos através da mais dura violência" (2012: 287). Entre os Karitiana, a mesma ambiguidade é notada por Vander Velden. Embora os cães sejam criados por serem "companheiros no mato", seu tratamento cotidiano é marcado pelo desprezo e pela violência. Cães são enfeites como trabalhadores dedicados e companheiros afetuosos, mas também são pa'ira (termo que se refere aos seres de potência predatória) devido à sua agressividade quando faminto. Nesse sentido, a ambiguidade reside no fato de que a 22 potência caçadora, virtude típica dos jaguares e presente também nos cachorros, é tanto admirada quanto temida (Vander Velden, 2012). Assim como no caso da etnologia amazônica, são poucos os textos que se debruçaram sobre as relações de povos autóctones com os cães em outras regiões etnográficas (com exceção, evidentemente da enorme literatura sobre pets no mundo anglo-saxão). Ainda que escassos, esses trabalhos fornecem dados interessantes e, na medida do possível, serão aproveitados ao longo dessa dissertação. Alguns deles, inclusive, apresentam aspectos semelhantes com aquilo que encontramos na Amazônia indígena, sobretudo a respeito ambiguidade que marca a relação entre os nativos e o animal. Para um caso das regiões árticas da América do Norte, cabe-nos mencionar a etnografia sobre os Inuit, de Frédric Laugrand e Jarich Oosten, denominada Hunters, Predators and Prey: Inuit perceptions of animals (2015). Os autores mostram como os cães podem ser consumidos como carne sem que isso afete a relação afetiva e de cuidado dos índios para com eles, quando vivos. A ligação dos cães com os humanos sempre varia entre o próximo e o distante, de acordo com o contexto e com as atividades nas quais ambos estão empregados (id: 152). Nesse sentido, mesmo que possa parecer controverso, comer o cão quando necessário e ter com ele ao mesmo tempo uma relação afetiva não é algo contraditório para os Inuit. Dada sua ambiguidade, os cães estão sempre na fronteira entre o dentro e o fora: têm que dormir fora das casas, mas em casos de temperaturas extremas podem se refugiar na entrada dos iglus (id: 154); e estão, também, no limítrofe entre a vida humana e selvagem, na medida em que certos aspectos ‘caninos’ (dog-like) são atribuídos aos índios não-inuit -- os quais são considerados parcialmente humanos e parcialmente selvagens (id: 155). A respeito dos Teneek, localizados no México, Ariel de Vidas mostra que a falta de higiene do cão e seus hábitos sexuais incestuosos motivam os maltratos infligidos pelos índios contra eles (2002: 542). Mas há aí uma ambiguidade, pois a figura do cão evoca tanto a repugnância quanto a familiaridade. Nas palavras do autor, “o animal é psicológica e socialmente próximo dos humanos, mas comporta-se de maneira não-humana e antissocial” (id: idem). Em uma região mais próxima da Amazônia, no Chaco, Diego Villar mostra como os Chané tratam seus cães de maneira ‘pouco amistosa’, mas ao mesmo tempo sentem-se ofendidos caso algum deles sejam maltratados por terceiros (Villar, 2005: 500). Como aponta o autor, os 23 cães operam como metáforas da vida social, justamente por evidenciarem o caráter paradoxal e ambíguo desta última (idem: 504). Outro aspecto constantemente notado pelos autores que trataram dos cães na Amazônia é a associação do animal ao jaguar. Seja morfologicamente, ou em termos de comportamento (no sentido de compartilharem atributos de ferocidade), alguns fatores atestam tal associação. A terminologia pela qual os cães são designados talvez seja o principal fator que aponta para uma 'semelhança lógica' (Vander Velden, 2012: 297) entre cães e onças. Se por um lado os nomes dos cães na Amazônia são definidos pelos seus traços físicos e comportamentais, muitas vezes o nome atribuído à espécie faz referência às onças. Entre os Karitiana, por exemplo, os cães são literalmente "onças mansas" ou "onças de criação", ou obaky by'edna (Vander Velden 2009: 9). Entre os Awá-Guajá, de modo semelhante, "utiliza-se a tradução 'cachorro' para fazer referência aos jawara (onças)" e se chama, muitas vezes, os cães de onça (Garcia, 2012: 296). Não nos cabe aqui, nesta introdução, uma análise mais detalhada sobre a associação do cão ao jaguar, ou sobre a ambiguidade na relação do animal com os índios, pois ambos os temas serão objeto de discussão ao longo de toda a dissertação. Valorizado ou desprezado, auxiliar dos humanos (como cão doméstico) ou inimigo deles (como jaguar), ‘o que nos cabe antecipar, nesta introdução, é que a instabilidade do estatuto do cão na Amazônia é uma característica inerente à relação entre os humanos e o animal. Como veremos nos capítulos que se seguem, o estatuto dos cães de auxiliar dos humanos -- tanto na caça quanto no ambiente doméstico -- corre sempre o risco de descambar para a predação generalizada, isto é, a predação incontrolável característica dos jaguares. A dissertação Esta dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro, dedico-me a refletir sobre os processos de introdução dos cães domésticos (Canis lupus familiares) nas Américas, dando enfoque especial à região que mais nos interessa, a Amazônia. Articulando os poucos trabalhos sobre o tema às referências dispersas nas etnografias, além de dados dos cronistas, meu objetivo é discutir a importância que o cão assume no período da Conquista. No decorrer do capítulo, trato também do debate sobre a presença de espécies de canídeos na Amazônia antes da chegada dos europeus, e argumento como, ao contrário dessas espécies silvestres, hoje raras, os cães de espécie 24 europeia se alastraram pela região por meio dos intercâmbios interétnicos. Pretendo neste capítulo discutir a importância assumida pelos cães ao longo da Conquista e, por conseguinte, analisar um contexto específico no qual se nota a importância dos cães enquanto objetos de troca. Começo, pois, com uma releitura sintética das evidências levantadas sobre o processo de inserção dos cães nas Terras Baixas da América do Sul. No segundo capítulo, trato dos modos pelos quais os cães se relacionam e são concebidos pelos índios na Amazônia. Mesmo sendo esta uma tarefa difícil, em virtude da diversidade dos dados, minha tentativa será a de sublinhar certas relações que aparecem com maior frequência na região. Na primeira parte do capítulo, dedicada às concepções indígenas sobre os cães, mostrarei como o animal está comumente vinculado à ideia de socialidade defectiva ou associalidade, e tirarei daí algumas implicações etnográficas. A seguir, tratarei do modo pelo qual os cães são alimentados, junto a um breve resumo sobre a alimentação como tema da etnologia amazônica; abordarei também o tratamento dos cães pelos humanos em geral, delineando um recorte de gênero e analisando o período da infância e da vida adulta do animal; finalmente, focalizarei as relação dos cães com seus donos e o tipo de controle que estes exercem sobre o animal. No terceiro capítulo, tratarei dos nomes atribuídos cães, bem como dos termos pelos quais a espécie é designada. Enfocarei também a participação do animal na atividade cinegética. O ponto de interligação entre estes tópicos será a análise que farei dos processos de capacitação e personalização dos cães, os quais estão diretamente ligados ao corpo do animal. O corpo dos cães será interpretado como um critério de personalização do animal, através das técnicas e da nominação, e como um dos motivos de sua associação ao jaguar. É a partir do corpo que os nomes dos cães são definidos: Pretos, Malhados, entre outros, são alguns dos nomes atribuídos aos cães e que designam as suas características físicas. Embora este tema da nominação dos cães já tenha sido analisado por Vander Velden, especialmente a respeito dos Karitiana (2010), meu objetivo é detalhar, a partir de dados etnográficos de diversos povos amazônicos, os modos mais recorrentes de nominação dos cães. Tratarei ainda das diversas técnicas utilizadas na Amazônia para desenvolver as capacidades ou aprimorar as habilidades cinegéticas dos cães caçadores. Buscarei mostrar, ao longo do capítulo, como tanto a atribuição dos nomes quanto estas técnicas de capacitação 25 são mecanismos pelos quais os mestres dos cães os cativam de modo a que venham a exercer seus atributos de ferocidade apenas em prol dos humanos. 26 Capítulo 1: Os cães na Amazônia: introdução e disseminação Viajando em companhia dos conquistadores, os animais domésticos adentraram as matas e terras das Américas tão logo chegaram ao continente. Os “descobridores” do Novo Mundo estavam providos de animais europeus em suas embarcações: na região das Antilhas, Cristóvão Colombo introduziu, em sua segunda viagem ao local, centenas de galinhas, cães, cavalos, bois, ovelhas e porcos (Vander Velden, 2012: 99); Pedro Alvares Cabral, por sua vez, também trouxe para a costa brasileira diversos animais domésticos, os quais foram não só rapidamente adotados pelos índios, como também inseridos nas relações de trocas entre brancos e índios e entre grupos indígenas diferentes (Gilmore, 1997: 251). Promovida pelos europeus no período da Conquista, a importação de animais para as Américas é concebida como um fator determinante para que a ofensiva da colonização sobre o Novo Mundo obtivesse sucesso. Segundo Alfred Crosby, se os europeus tivessem chegado a esta região “dispondo de tecnologia do século XX, mas sem animais, não teriam provocado uma mudança tão grande quanto a que causaram desembarcando lá com cavalos, vacas, porcos, cabras, carneiros, asnos, galinhas, gatos e outros bichos” (1986: 156). Por se auto-reproduzirem, os animais trazidos pelos europeus alteraram o meio ambiente nativo, em escala continental, com eficácia a ponto de ser “superior à de qualquer máquina que tenhamos até hoje concebido” (id: idem). Não obstante a relevância e o papel determinante dos animais no sucesso dos conquistadores, poucos foram os trabalhos9 – da etnologia, sobretudo, mas também de outras áreas -- que se voltaram a uma análise dos processos de inserção dos animais domésticos europeus nas Américas. Sobretudo com o livro Imperialismo ecológico (2002), Alfred Crosby foi o primeiro autor a chamar atenção para os processos de expansão biológica europeia e suas consequências econômicas, sociais e culturais nas regiões denominadas “neoeuropas”, que correspondem aos países da Oceania, especialmente Austrália e Nova Zelândia, e ao continente americano. Além desse amplo espectro geográfico, o autor 9 Para listar alguns destes trabalhos, ver Vander Velden (2012) sobre as galinhas e (2012b) sobre outros animais específicos, como o gado, pássaros, cães etc.; Norton (2015) também sobre galinhas; Cormier sobre macacos (2003); e Villar (2005), Vander Velden (2009) e Medrano (2014) sobre os cães. 27 também trata dos mais diversos animais: “cavalos, vacas, porcos, cabras, carneiros, asnos (...)”. Consequentemente, a partir da inauguração deste campo de estudos, e influenciados pela perspectiva de Crosby, autores diversos intentaram tratar não mais dos animais em geral, mas sim de animais específicos, e não mais de regiões tão dispersas, mas sim delimitadas mais precisamente. No início deste primeiro capítulo, este será o meu objetivo. Ao tratar dos povos nativos das Américas, restrinjo-me a uma análise sobre como eles foram impactados pela introdução específica dos cães. Já em relação à delimitação geográfica, reduzo a minha análise aos processos de introdução dos cães nas Terras Baixas da América do Sul (especialmente Amazônia) e à influência que estes animais exerceram sobre os índios desde a sua chegada na região junto aos conquistadores. Após a apresentação destes dados, abordo a maneira pela qual os cães foram e têm sido disseminados pelos próprios grupos indígenas amazônicos. Vale notar, porém, que embora a análise aqui proposta enfoque especificamente a relação com os cães na Amazônia, tal delimitação não pressupõe o uso de dados apenas sobre as TBAS ou apenas sobre os cães. Pelo contrário, e até pela escassez de dados sobre estes últimos, parte do que aqui será tratado, apontado ou argumentado resultou de leituras sobre as relações com os cães em outras regiões, bem como sobre relações de grupos indígenas com animais domésticos que não os cães. Comecemos com a chegada dos cães nas Américas. 1.1 A Conquista espanhola e os cães Vindos do continente europeu, os cães foram introduzidos nas Américas pela primeira vez na segunda viagem de Cristóvão Colombo à região, ainda no final do século XV. Encarregado de equipar a frota para a empreitada ao Novo Mundo, Juan Rodríguez de Enn embarcou em 14 caravelas um total de 20 cães, dentre eles alguns mestiços e outros galgos10. Um ano depois da chegada ao destino, nas Pequenas Antilhas, boa parte desses cães foram utilizados por Rodriguez de Enn nas “campanhas repressivas” promovidas pelos espanhóis contra os nativos em La 10 Galgo não caracteriza uma raça de cachorro, mas sim um conjunto de raças que compartilham características em comum. Whippet, Saluki, Italian Grey Hound, Sloughi são algumas das raças dentre as quais os cães galgos podem ser caracterizados. Os cães galgos acompanhavam os humanos nas expedições ao longo do mundo e, por isso, deram origem a novas raças. Em cada uma das regiões nas quais se ambientava, desenvolviam algumas características diferenciadas, estas que eram provocadas principalmente pelas influências do meio e pelo cruzamento com outros cães (Almanaque dos cães, 2011: 48). 28 Espanõla11, onde se pretendia fundar a segunda colônia da Espanha no Novo Mundo (Jímenez, 2011: 178). A partir desse momento, “o uso do ‘melhor amigo do homem’ como arma de combate se estendeu por todos os territórios americanos” explorados pelos espanhóis (id: 178-9) 12. Por mais que vários outros animais, como cavalos, galinhas e cabras, também estivessem presentes nas viagens de Colombo às Américas, os cães, especialmente, passaram a ser companheiros fieis dos conquistadores. E por mais que provavelmente já existissem na região certas espécies de canídeos, como atestam os dados (ver Stahl, 2013), e como será discutido brevemente à frente, os índios que viviam nestas regiões se espantaram com a agressividade do animal introduzido: “o cheiro e o som do medo passaram a se fazer sentir e ouvir nas mentes dos índios, os quais não sabiam muito bem para que serviam e onde seriam utilizados aqueles cães” (Piqueras, 2006: 188). Mas aos poucos os índios passaram a conhecer esta nova dinâmica, a qual era “dominada, entre outros, pelo aço, pela pólvora, pelos cavalos e, enfim, pelos cães introduzidos” (id: 189). Com as sucessivas viagens promovidas pelos europeus às Américas, cada vez mais os cães difundiam-se pelo continente, sendo utilizados como instrumento de combate em toda a Conquista13. Muitos dos confrontos entre índios e conquistadores na América espanhola sobre os quais se tem informação envolveram a utilização de cães como instrumento militar. Segundo Piqueras, esta utilização era especialmente imprescindível em regiões nas quais os cavalos tinham dificuldade de se locomover, como nas terras altas da América do Sul: “siempre protegidos con escaupiles de algodón ajustados al cuerpo y gruesas carlancas fue mayor en zonas difíciles o boscosas donde el caballo, tan útil en espacios abiertos no podía maniobrar para imponer su clara superioridad” (id: 191). 11 La Espanõla designava os arquipélagos das Antilhas Maiores, no mar do Caribe, onde hoje se situam os Estados do Haiti e da República Dominicana. 12 A utilização de cães como instrumento militar não ocorreu apenas na Conquista espanhola da América. Nas colonizações britânica e germânica da Nova Guiné, tempos depois, diversos cães acompanharam os conquistadores. Segundo Golub, “although their ubiquitous presence is often overlooked, the dogs of Papua New Guinea have always been at the forefront of Australian exploration” (2015: 2). Já em relação a América do Norte, segundo Marion Schwartz, os cães também foram associados à guerra: “Dog soldiers were considered the bravest of all the military societies on the Plains in the nineteenth century” (1997: 24). 13 Ao utilizar o termo “instrumento” para me referir à função exercida pelos cães, estou antes reproduzindo os termos contidos na bibliografia e nos relatos cronistas que reduzindo as possíveis relações afetuosas (isto é, menos objetificadas) entre o animal e seus donos. 29 A literatura etnohistórica a respeito do final do século XV (momento inicial da Conquista espanhola) menciona alguns conflitos nos quais os cães exerceram função militar: além do caso de La Española, já mencionado, sabe-se que, na Jamaica, entre 1494 e 1495, Colombo utilizou cães de caça como um recurso bélico de importância singular. Nas palavras do conquistador, “os cães são grandes guerreiros, e caso estejamos em torno de dez homens, há grande necessidade de os termos por perto” (Colombo, 1992: 296). Já na conquista de Porto Rico, alguns meses depois, diversos cães foram utilizados por Juan Ponce de León, o qual estava a serviço de Hernán Cortés. Nas crônicas desse episódio, Ponce de León menciona: “seus cães vão adiante, o precedendo de todo e qualquer encontro com os nativos” (Piqueras, 2006: 191). Em suma, os cães trazidos pelos europeus às Américas foram, em diversas regiões, utilizados como seres que provocaram “terror psicológico, tortura física e pena de morte aos índios” (id: 193). As gravuras de Theodore de Bry14 abaixo ilustram bem a utilização dos cães como instrumentos de repressão aos índios: 14 Theodor de Bry foi um artista holandês que, no final do século XVI, reinterpreta imagens que circulavam na Europa durante a Conquista. Para uma análise mais detalhada sobre o tema, ver Kalil (2011). 30 Imagem 1, de Theodor de Bry: “The Dogs of Vasco Nunez de Balboa Attacking Indians”, de 1598. Imagem 2, de Theodor de Bry: “Spaniards killing women and children and feeding their remains to dogs”, de 1598. Mas a função militar não foi a única exercida pelos cães nas regiões conquistadas pelos espanhois. Por mais que esta função tenha sido a predominante, além de instrumentos de repressão os cães exerciam o papel de prevenir ataques promovidos pelos indígenas aos conquistadores. Sempre atentos, os cães evitavam, com seu olfato aguçado, as ofensivas noturnas dos índios que visavam surpreender os europeus (Piqueras, 2006: 190). Além disso, os cães eram importantes para que, no mato, as armadilhas e emboscadas preparadas pelos nativos pudessem ser descobertas – descobrimento este que escapava à capacidade dos brancos (id: idem). Por fim, os cães também exerceram importantes funções alimentares: desempenharam a função de auxiliares na caça, providenciando uma alimentação mais proteica aos conquistadores: “os cães sempre foram um auxiliar importante no rastreamento, na atração e na coleta de vários animais de caça, como os veados, antas, queixadas e javalis” (id: 194); e, por outro lado, em alguns casos de fome extrema -- sobretudo nas longas expedições promovidas -- os cães também serviram como alimentos aos europeus (Jimenez, 2011: 184). Em uma carta entregue ao rei da Espanha, Francisco 31 Pizarro relata o caso da expedição de Orellana à Amazônia, no século XVI, onde os conquistadores foram obrigados a se alimentar de cães (e cavalos): And when the expeditionary force had, having gone that far, saw the junction and realized that there was no relief for them in the way of food... they become greatly discouraged, because for days the whole expeditionary force had eaten nothing but palm shoots and some fruit stone which they found on the ground [and] which had fallen from the trees, together with all the various kinds of noxious beast which they were able to find, because they had eaten in this wild country more than one thousand dogs and more than one hundred horses, without any other kind of food whatsoever (Pizarro, 1542: 183 apud Schwartz, 1997). Mas, na medida em que o período da Conquista encontrava seu fim, a partir do século XVII, e ao passo que a repressão aos grupos indígenas se abrandava, a função dos cães foi modificada. Ao invés de servirem como alimento aos europeus, os cães se tornaram fornecedores de alimentos, como auxiliares na caça; e ao invés de continuarem a atuar como força repressiva, passaram a cumprir funções de guarda e proteção dos acampamentos dos brancos (ou mesmo, das aldeias dos índios): Una vez finalizado el proceso de Conquista, los perros peninsulares comenzaron a perder el protagonismo otorgado en la primera mitad de la centuria, puesto que el principal objetivo era colonizar y no conquistar (..). Algunos canes tuvieron la suerte de ser reconvertidos a nuevas funciones una vez nalizada la Conquista y sirvieron a “españoles e indios en todos los usos que en España, como en la caza y en la guarda de las casas y heredades de sus amos (Jímenez, 2011: 202). Como se vê nesses dados, então, os índios nas regiões dominadas pelos espanhois que anteriormente haviam sido vítimas dos cães (ou mortos para que se tornassem alimentos para eles) passaram a familiarizá-los em seu cotidiano. Em outras palavras, os grupos nativos se adaptaram à presença dos cães em suas aldeias, o 32 que culminou na transformação da concepção do animal -- “que pasaron de enemigos temidos a queridos por los naturales” (Jímenez, 2011: 203). Em relação à Amazônia, no entanto, temos poucos dados para afirmar que a utilização de cães enquanto instrumento de repressão na região se alastrou da mesma maneira pela qual esse processo se deu nas colônias espanholas. Não obstante, temos muitos indícios de que, assim como no Caribe, terras altas e em outras regiões da América do Sul, na Amazônia os cães também se tornaram figuras cada vez mais presentes no cotidiano dos índios da região. E por mais que os dados que atestam tal presença se refiram mais aos tempos atuais que os da Conquista, há algumas fontes que nos permite perguntar se os cães foram introduzidos na Amazônia para cumprir os papeis militar e alimentar que apresentamos aqui. Tratemos, a seguir, desse ponto. 1.2 Introdução dos cães na Amazônia: antes ou depois da Conquista? Durante o século XVI, alguns espanhois planejaram expedições cuja finalidade era a de adentrar na floresta tropical amazônica. Em 1538, Pedro de Anzures, liderando 300 brancos e 4.000 nativos, saiu de Cusco em busca do tão almejado El Dorado, cidade que, na imaginação dos conquistadores, seria inteiramente povoada por ouro puro e maçiço (Souza, 2001: 132). Outra expedição sobre a qual se tem informação é a de Gonzalo Pizarro, cuja partida se deu em Quito no início de 1541. Assim como a primeira expedição de Pedro de Anzures, Pizarro esteve em companhia de outros espanhois e de mais 4.000 índios. Mas, diferentemente dela, nesta segunda foram conduzidos também “milhares de lhamas para transporte de alimentos, 2.000 porcos e 2.000 cães de caça – enormes e ferozes cães que os espanhóis atiçavam contra os índios” (Souza, 2001: 83, grifos meus)15. Por mais que este número seja bastante questionável, ao menos em termos logísticos, tudo indica que muitos cães estiveram presentes na expedição de Pizarro. Em Amazônia: as vozes do rio, livro que analisa as primeiras crônicas escritas sobre região amazônica, Ana Pizarro cita a presença de, ao invés de 2000, 200 cães junto aos espanhois na mesma expedição (2009: 43). Já em Descubrimento del río de Orellana, a crônica desta expedição escrita por Frei Gaspar de Carvajal, o que se encontra é: 15 Segundo Márcio Souza, a estratégia promovida pelos espanhóis de atiçar seus enormes e ferozes cães contra os índios deu origem à expressão “atirar aos cães, largamente utilizada ainda hoje” (2001: 142). 33 havíamos conseguido reunir quatro mil desses infelizes (sic) índios, além de algo em torno de 220 espanhois, número considerável para aqueles tempos (...); outros tantos cavalos, os quais valiam uma fortuna; lhamas como bestas de carga, destinadas a carregar os alimentos; mais de 2 mil porcos; e quase outros tantos cães, os quais eram auxiliares eficazes na caça e, quando fosse o caso, para jogá-los aos índios e ‘aperrearlos’16 (Gaspar de Carvajal, [1642] 1894: LXIV). Pedro de León, outro cronista da expedição de Pizarro, confirma a utilização de cães no etnocídio indígena promovido pelos espanhois: “El mariscal don Jorge Robledo consintiendo hacer en la provincia de Pozo gran daño a los indios, y que con las ballestas y perros matasen a tantos como de ellos mataron espanhois” (1985 [1550]: 293). Jimenez, por sua vez, também afirma que na expedição de Pizarro foram cometidas “auténticas barbaridades, quemando y echando numerosos nativos a los perros” (2011: 192). Entretanto, se no período da Conquista da América espanhola podemos mencionar diversos conflitos nos quais estiveram envolvidos os espanhois e seus cães contra os nativos, em relação à Conquista da Amazônia, especificamente, os dados a esse respeito não são tão contundentes. Ao menos em relação aos séculos XVI e XVII, nenhuma das crônicas de viagem posteriores a de Frei de Carvajal menciona a utilização de cães como instrumento militar (mais à frente, porém, veremos alguns casos mais recentes nos quais os cães exerceram tal função). Vimos, portanto, que há uma discrepância entre a utilização maciça dos cães na América espanhola em geral, no período da Conquista, entre os séculos XV e XVI, e a utilização dos cães ao longo das Terras Baixas da América do Sul, seja na colonização espanhola ou portuguesa. Não obstante, em relação a esta última região há muitos relatos dos séculos XVII ao XIX que fazem referência aos cães como companheiros dos europeus. Os cães muitas vezes estiveram presentes nas longas expedições promovidas por aqueles que se aventuraram pela região amazônica neste período. Seja como um animal que oferecia certa proteção aos perigos encontrados na mata, seja como auxiliares nas atividades de caça. Porém, antes de explorarmos melhor esses episódios que evidenciam a expansão do animal pela Amazônia, tratemos das espécies de canídeos que já existiam nas Américas (e na região 16 Em espanhol, o termo “aperrear” significa “deixar que cães ferozes matem e despedacem alguém”. 34 amazônica) antes da chegada dos europeus; bem como das diferenças em termos de uso e de relação entre estas espécies nativas e a introduzida na Conquista. A presença dos cães na Amazônia no período pós-Conquista, veremos, é atestada por diversos cronistas e etnógrafos. Antes desse período, no entanto, a presença do animal desperta dúvidas -- as quais são motivadas não só pela falta de vestígios e datações arqueológicos, mas também, e sobretudo, pela diversidade de espécies de canídeos que a literatura zoológica abarca. Ao refletirmos sobre a introdução dos cães nas Américas devemos lidar com uma série de problemas de ordem taxonômica, na medida em que os termos científicos utilizados para designar as espécies encontradas nos sítios arqueológicos variam demasiadamente. Além disso, a fragmentação ou a má conservação dos materiais arqueológicos (mais especificamente, de dentes e ossos de cães) indiscutivelmente dificultam a diferenciação entre os canídeos selvagens e as outras espécies possíveis de serem encontradas (Mitchell, 2017: 303). Por esses motivos, muitos autores, mesmo que aceitem a presença de canídeos antes da chegada dos europeus, pouco qualificam as suas conclusões em termos científicos17. A família dos canídeos (ou, em latim científico, canidae) abrange 16 gêneros e 36 espécies de ampla distribuição, sendo encontrada desde os trópicos até o Ártico. A família é cientificamente dividida em três subfamílias, e o critério de diferenciação é o número de dentes. As três subfamílias são: Otocyoninae (raposa orelha de morcego), que possui 46 a 50 dentes; Simocyoninae, já com redução dos dentes, entre 43 e 46; e a Caninae, que inclui os demais canídeos, como cães, raposas e lobos, que possuem 42 dentes (Hennemann III, et al, 1983)18. A discussão sobre a presença do cão doméstico (Canis lupus familiares) nas Américas remonta, assim, a diversas áreas do conhecimento, como a arqueologia, a história, a biologia, antropologia, entre outros. Com efeito, muitas são as conclusões a respeito. Algumas perguntas -- como as que se referem aos motivos da quase extinção das espécies nativas na região, depois da chegada dos europeus -- ainda permanecem abertas. Em vista de preencher 17 Como veremos à frente, Marion Schwartz (1997: 40) defende a presença de cães na bacia do Orinoco e nas Guianas antes da chegada dos europeus porque, em muitos grupos indígenas, foram encontrados termos nativos para designar o cão. Porém, creio que esta evidência não se sustenta perfeitamente, já que nem mesmo os cronistas da época conheciam as línguas indígenas. Peter Mitchell, diferentemente, apresenta dados sobre migrações entre as terras altas e Orinoco-Guianas e mostra como, por isso, é possível que a espécie Canis lupus familiares já estivesse presente em certas regiões da TBAS. 18 No Brasil, há 6 espécies de canídeos silvestres, sendo uma delas da subfamília Symocyoninae, a Speothos venaticus, e as demais da sub-familia Caninae: Chrysocyon brachyurus, Cerdocyon thous, Lycalopex vetulus, Pseudalopex gymnocercus e Atelocynus microtis (Júnior et al., 2003). 35 esta lacuna, o antropólogo e arqueólogo inglês Peter Mitchell tem sido bem sucedido em sua proposta de traçar, a partir de dados arqueológicos, as cronologias da introdução dos cães na América do Sul e da distribuição do animal, antes da chegada dos europeus, ao longo das diversas regiões do continente. As evidências mais antigas da presença da espécie dos Canis lupus familares na América do Sul (entre os anos 3000 e 1500 a.C.) provêm de sítios arqueológicos localizados em regiões distintas do continente, a saber, nas terras baixas do Equador, nos Andes peruanos e bolivianos e no Deserto do Atacama. Datações mais recentes revelam a presença de cães nativos também em outras regiões. No Caribe, por exemplo, há evidências arqueológicas da presença do animal desde o tempo de Cristo, e, segundo Mitchell, o que explica este fato são as constantes migrações de grupos nativos, os quais se locomoviam do Orinoco ao Caribe carregando consigo plantas e animais (Mitchell, 2017: 313 apud Giovas et al. 2011; Fitzpatrick 2015). Há também evidências da presença de espécies de canídeos em geral no Cone Sul: especificamente, nos pampas, na região noroeste da Argentina e no extremo norte da Patagônia (Prates et al. 2010); e na região sul do Brasil, onde foram encontrados os primeiros e únicos vestígios de cães pré-colombianos no país (Milheira et. al., 2016). Embora seja difícil deduzir o quão numerosos eram os cães nativos na América do Sul antes da chegada dos Europeus, fato é que atualmente muitas destas espécies foram extintas ou estão em vias de extinção (Mitchell, 2017). E como dito acima, uma das perguntas que permaneceram por muito tempo abertas diz respeito exatamente aos motivos dessa redução no número de cães no continente. Com base em dados da zoologia e da veterinária, Peter Mitchell busca responder esta pergunta identificando onde, como e em quais condições certas doenças infectaram e se espalharam pelos cães na região, tornando-se então “fatores limitantes” à expansão do animal: a disenteria, rangeliose (a “febre amarela dos cães”) e tripanossomíase caninas, bem como leishmaniose, para o autor foram as principais doenças responsáveis pela progressiva diminuição dos cães selvagens na América do Sul antes da chegada dos brancos. A Amazônia, porém, é um caso a parte. Se os dados sobre a presença e quase desaparecimento das espécies de canídeos pré-colombianos na América do Sul em geral já são por si só difíceis de serem levantados, enfocar a região amazônica é ainda mais complexo devido às dificuldades de se encontrar ossaduras de cães na região (Mitchell, 2017: 309). Mesmo assim, algumas hipóteses a respeito da introdução do 36 animal na região têm sido elaboradas: segundo Mitchell, a possível presença de cães (Canis lupus familiares) na Amazônia -- cujas primeiras evidências datam do primeiro milênio d.C. -- deriva de migrações que partiram da Colômbia, Venezuela e Guianas (2017: 303). Para o autor, os cães nestas regiões foram se dispersando até serem “subsequentemente introduzidos entre os grupos indígenas da região Amazônica” (2017: 303). Em seu livro History of dogs in Early America (1997: 40), Schwartz apresenta uma série de termos que seriam utilizados pelos índios localizados no arco das Guianas e do Orinoco e sugere, a partir destes indícios, que o cão já estaria presente nesta região da Amazônia antes da chegada dos europeus. Este mesmo indício é levantado no quarto volume do Handbook of South American Indians, onde são apresentados termos indígenas para se designar os cães nas Guianas. Segundo Julien Steward, esse fator asseguraria a presença do cão na região antes de sua introdução pelos conquistadores (1948). Vander Velden, por sua vez, utiliza-se do mesmo argumento em seu livro para sustentar a possível presença de cães na região das Guianas antes da Conquista (2012: 39). Em relação a outras regiões da floresta amazônica, porém, praticamente não há dados arqueológicos e etnográficos que comprovam a presença de cães entre os índios antes da chegada dos europeus. Nesses sentido, por mais que certas espécies já estivessem presentes em regiões distintas das Américas há aproximadamente 10 mil anos (van Asch et al. 2013), a tese aceita por Mitchell, Schwartz e Koster é a de que o cão de espécie Canis lupus familiares adentrou no interior da floresta tropical amazônica (e foram, consequentemente, adotados nas aldeias indígenas) apenas depois da chegada dos brancos (Mitchell, 2017: 306; Schwartz, 1997: 221). A hipótese da presença limitada dos cães nas margens da Amazônia se justifica, segundo Koster, pela alta taxa de mortalidade dos cães na região da floresta tropical. Os fatores desta mortalidade apresentados pelo autor são: os constantes ataques de felinos e porcos, as picadas de cobras, a desnutrição e também as doenças infectocontagiosas (Koster 2009: 591). Como vimos há pouco, Peter Mitchell, por sua vez, baseia-se nas doenças dos cães para sugerir uma explicação para a falta de evidências do animal no interior da floresta amazônica. Nas palavras do autor: I submit that the long-established presence in wild animal populations of diseases 37 such as canine distemper, canine trypanosomiasis, visceral leishmaniasis, and—to the south of the Amazon Basin—canine rangeliosis helps to explain the limited distribution and the staggered expansion of dogs in South (and perhaps also Central) America (2017: 335). Do ponto de vista biológico, de fato, as doenças que acometeram os cães reduziram a sua expansão ao longo da América do Sul. Não obstante, se estes “fatores limitantes” prejudicaram a expansão dos cães domésticos (Canis lupus familiares) antes da Conquista para o interior da Amazônia, com a chegada dos brancos o que se evidencia é um processo generalizado de familiarização do animal nas aldeias indígenas da região. Como afirmam John Varner e Jeannette Varner no livro Dogs of Conquest (1983: 168), “os grupos amazônicos que ainda não conheciam os cães, quando os conheceram, logo se entusiasmaram com a possibilidade de criá-los, uma vez que entenderam as habilidades de caça de tais importações europeias”. Tratemos, enfim, do processo de introdução dos cães entre os índios amazônicos19. 1.3 Depois da Conquista: o processo de introdução dos cães nas aldeias indígenas da Amazônia Como vimos acima, as crônicas de Carvajal sobre a expedição organizada por Orellana e Pizarro são os primeiros relatos da introdução de cães domésticos europeus na floresta tropical amazônica. Na ocasião, os cães foram utilizados como instrumento militar para atacar os povos nativos da região, e tornaram-se também, no meio da viagem, alimentos para os viajantes (Gaspar de Carvajal, 1894: 132). Embora esta empreitada rumo ao Eldorado pareça bastante atípica, na medida em que não se encontram tantos cães em relatos subsequentes dos séculos XVI ou XVII, a utilização deste animal nas expedições pelo interior da Amazônia foi uma constante durante a colonização da região pelos brancos, principalmente a partir do século XVIII. 19 Uma questão que não pode ser ignorada é: se certas espécies, como a S. Venaticus, já eram conhecidas pelos índios ante da chegada dos europeus, porque elas não foram domesticadas, diferentemente da Canis lupus familiares? Qual seria o fator determinante para essa rejeição? Embora eu imagine que a resposta não esteja na diferença entre as espécies, mas sim na origem delas (autóctone/exterior), não possuo conhecimento suficiente para responder a esta resposta sem passar por cima das particularidades de cada uma das espécies. Sobre o papel constitutivo da diferença entre espécies autóctones e introduzidas, ver Vander Velden (2012), e para um debate mais amplo, ver Descola (2002; 2013). 38 Mas os fins eram outros. Como veremos, em algumas das crônicas destas viagens, os cães aparecem como companheiros dos viajantes, não mais exercendo funções militares ou servindo de comida. Especificamente na Amazônia, são poucos os casos em que cães aparecem como instrumentos militares. Há dois casos emblemáticos. Na Casa Arana20, localizada na Amazônia peruana, ainda no século XIX, cães foram utilizados como armas pelos caucheiros no período do boom da borracha. Segundo Taussig, os índios serviam para ser “eaten up by maggots, or to serve as food for the chiefs' [i.e., rubber station managers'] dogs” (Taussig, 1986: 34). O outro episódio emblemático ocorreu na ditadura militar brasileira. Especificamente no ano de 1982, o Governo Militar da Amazônia autorizou uma empresa paramilitar a utilizar “cartucheiras 20 milímetros, rifles 38, revólveres de variados calibres e cães amestrados” para “limpar a área” ocupada pelos Waimiri-Atroari e enfim possibilitar o funcionamento da atividade mineradora na região (Relatório Comissão Estadual da Verdade, 2012: 13)21. As funções predominantemente exercidas pelos cães quando acompanhavam seus donos nas expedições pela Amazônia passaram a ser: em primeiro lugar, a de proteger os brancos dos perigos com que estes se defrontavam ao entrar na floresta; e, em segundo, a de auxiliá-los na caça, como farejadores das presas. A primeira função, de proteger os brancos dos perigos na mata, era praticada de modo a alertar e evitar ofensivas de “índios saqueadores” ou de animais selvagens, como o jaguar. Em relação àqueles, Wied-Neuwied conta que, em sua expedição no início do século XIX, sentinelas eram regularmente estabelecidas com o auxílio de cães: Contra uma surpresa noturna, que eles não empreenderiam facilmente na trova, mas de preferência nas noites de luar, estávamos garantidos pela vigilância dos nossos cães. Um grande cão pertencente ao "ouvidor" distinguia-se dos demais; parecia farejar os selvagens quando rondavam pela montanha, além da "lagoa". Enfurecia-se nesses 20 A Casa Arana, gerida pelos irmãos Julio Cesar Arana e Lizardo Arana, foi uma empresa de exploração de caucho que atuou na Amazônia no século XIX. A Casa foi palco de um dos maiores genocídios de que se tem notícia. De acordo com relatos de sobreviventes, mais de 40 mil índios foram escravizados e/ou mortos pelos irmãos (ver Hardenburg, 1912). 21 Outro episodio bastante notável, mas não amazônico, é o do massacre dos Botocudos, no qual soldados portugueses, orientados por Dom João VI, “davam a seus cães a carne dos botocudos”, fazendo com que os índios fossem caçados como animais (Otoni, 2002: 32). Este massacre se desenrolou no início do século XIX. 39 momentos, latindo sem parar na direção do local suspeito (WiedNeuwied, 1967 [1815]: 188). Na mata, os cães também protegiam os brancos de ataques de animais selvagens, sobretudo do jaguar. Na Expedição Rondon-Roosevelt, por exemplo, Amilcar de Magalhães se surpreendia com a destreza dos cães para rastrear as onças: “fiquei dando grande valor aos cães, por ver como são inteligentes e ao mesmo tempo diligentes (...) era lindo: uma fileira de cachorros chefiada por um deles, em disparada pelos campos.” (Magalhães, 1942: 79). Os cães também eram importantes auxiliares dos brancos na atividade da caça. Spix e Martius, ao relatarem uma expedição em busca de caça pela floresta amazônica, contam como cães caçadores “bem amestrados” possibilitavam que a empreitada fosse bem sucedida: Procuráva-mos, com o auxílio de alguns caçadores amadores e de seus cães bem amestrados, caça grande: caititu, veado, onça e anta (...). De repente o mato anima-se: aparece a anta, perseguida pelos cães latindo, e que se precipita de cabeça estendida e cauda enrolada, em linha reta pela brenha, atropelando à sua frente tudo que lhe embarga o caminho. (Spix e Martius, 1981 [1828]: 83) Pela sua destreza na atividade da caça22, e também pela importância que exerciam na guarda dos acampamentos dos viajantes, os cães se tornaram não só animais de grande valor utilitário como também despertaram sentimentos afetivos. Em Eu vi o amazonas, o indigenista Eduardo Barros Prado comenta sua estima pelo cão que o acompanhou nas instalações de estações telegráficas promovidas pela Comissão Rondon: “aquele animalzinho, que nunca se cansava de dar-me provas de estima e sempre que o podia fazer, estava ao meu lado, procurando adivinhar meus pensamentos” (Prado, 1952: 381). O apreço de Prado pelo seu cão, “amigo, além de leal e inteligente”, decorre do fato de que o indigenista, em suas próprias palavras, “devera [ao seu cão] a própria vida, por ocasião da célebre noitada em que matei a minha primeira onça” (id: idem). 22 Uma análise específica sobre a participação dos cães na prática da caça será realizada no capítulo 3 dessa dissertação. 40 Não foram apenas os brancos que se interessaram pelas funções exercidas pelo cão, e não foram apenas eles que estimavam a companhia deste animal domesticado. Pelo contrário, os índios, tão logo conheceram o animal, também passaram a apreciar e a desejar sua companhia e utilidade. No livro História da alimentação no Brasil, Luis Cascudo faz um panorama sobre como alguns dos grupos indígenas da Amazônia passaram a apreciar os cães depois da introdução dos diversos animais europeus nas aldeias da região. Nas palavras do autor, os cães são “a maior conquista dos índios”: (...) companheiro incomparável. As cunhãs amamentam-no como aos filhos. Dividem com ele o último alimento. Frei Ivo d'Evreux, 1612- 1614, escreve que os indígenas do Maranhão choram a morte do cão. Os mundurucus sepultam-no como a um guerreiro da tribo. Os nambiquaras da Serra do Norte, Mato Grosso, conheceram o cão em 1907-1909, levado pelas expedições Rondon. Em 1912 era o indiscutível favorito. "Na cuia em que o dono come, há sempre lugar para o focinho do cão", observa Roquette Pinto. Os witotos enterram o cachorro vivo com o dono morto. Caçarão juntos nas matas do Céu. (Cascudo, 1967: 153-154). Assim como aconteceu em relação aos brancos, os cães passaram a ser valorizados pelos indígenas também pelas suas capacidades cinegéticas. Como já mostrado acima, e como será mais desenvolvido no terceiro capítulo, os índios da Amazônia que não criavam cães domésticos prontamente desejaram fazê-lo, quando compreenderam as habilidades de caça do animal (Varner & Varner, 1983: 168). Em relação aos Waiwai, cujo caso especial será tratado à frente, o interesse pelas capacidades cinegéticas do cão (que lhe confere também valor enquanto objeto de troca) fora despertado após a visita de um viajante branco no início do século XIX. Segundo Schwartz, nesta ocasião os Waiwai foram informados que poderiam se tornar grandes caçadores (a ponto de se tornarem famosos na região) desde que treinassem seus cães para a caça (1997: 41). Grande parte das referências bibliográficas nas etnografias que fazem menção aos cães entre os índios da Amazônia concebem-no como um animal auxiliar na caça. Em alguns grupos amazônicos, como diz Schwartz (1997: 47), rituais eram realizados 41 a fim de preparar os cães para a atividade cinegética. Estes rituais tinham como objetivo afastar os espíritos maléficos dos caçadores e cães, além de atrair as presas para onde eles pudessem encontrá-las sem dificuldades (id: idem). Michael Brown, autor de uma etnografia sobre os Aguaruna Jivaro do Peru, expôs que os cães de caça sempre foram objeto de considerável atividade ritual. Por exemplo, “festas inteiras eram destinadas a dotar um cão com força e habilidade” (1967: 80). Trataremos destes rituais no capítulo 3. Por ora, cabe-nos assinalar apenas que, pelas suas capacidades e também pelo afeto que despertavam, os cães logo se expandiram pelas Terra Baixas da América do Sul. Esse fato já aparece, inclusive, na crônica do início da colonização. Falando sobre os ameríndios do litoral Atlântico, Fernão Cardim, em Do clima e terra do Brasil, menciona que: Os cães têm multiplicado muito nesta terra, e ha-os de muitas castas; são cá estimados assi entre os Portuguezes que os trouxerão, como entre os Indios que os estimarão mais que quantas cousas têm pelos ajudarem na caça, e serem animais domesticos, e assi os trazem as mulheres às costas de huma parte para outra, e os crião como filhos, e lhes dão de mamar ao peito23 (Fernão Cardim, 1980 [1623:58], grifos meus). Como vimos nos dados apresentados anteriormente, os brancos são responsáveis pela introdução dos cães domésticos na Amazônia. Mas, por outro lado, os índios também passaram a protagonizar o processo de disseminação do animal ao longo da região. Tal protagonismo se deu, sobretudo, nas trocas que envolviam ora índios e brancos, ora grupos indígenas distintos. Para refletirmos mais sobre esse processo de disseminação e expansão dos cães nas Terras Baixas da América do Sul, especialmente Amazônia, tratemos então dos circuitos de intercâmbios, com atenção especial ao caso das Guianas. 1.4. Redes de intercâmbio e disseminação dos cães na Amazônia O intercâmbio de animais entre brancos e índios ocorre desde a chegada dos conquistadores no Novo Mundo. Em sua célebre “Carta do Achamento do Brasil”, 23 Para uma análise mais detalhada sobre as relações de alimentação entre os cães e seus donos, ver capítulo 2. 42 Pero Vaz de Caminha, além de fazer referência aos exóticos animais encontrados, menciona também as trocas de animais que ocorriam entre europeus e índios: Resgataram lá por cascavéis [guizos] e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores (...) (Caminha, 1999 [1500]: 49-50). Ainda na costa atlântica, Jean de Léry nos fala sobre a troca de macacos envolvendo índios e europeus: (...) há também nessa terra do Brasil grande número de pequenos macacos pretos a que os selvagens chamam cay. Depois de curados e domesticados em casa, trocam-nos os selvagens com os estrangeiros que por aí viajam por quaisquer mercadorias (Léry, 1961: 143-44). Como podemos perceber a partir desses relatos, o intercâmbio de animais por bens dos conquistadores foi um fenômeno comum na Conquista e, como se nota nesta passagem de Jeán de Lery, os ameríndios passaram de meros fornecedores de animais nativos a receptores de animais domésticos europeus. E como veremos a seguir, ao menos em relação aos cães, tais trocas permanecem recorrentes até os dias de hoje. Apesar disso, a etnologia americanista pouco se dedicou a esse fenômeno. Se por um lado existe um número considerável de trabalhos que tratam da circulação de objetos materiais (ver Lévi-Strauss, 1976 [1942]; Hugh-Jones, 1992; Coppens, 1971; entre outros), poucos são os trabalhos que tratam da circulação de animais (como galinhas, cavalos, vacas e cães), especialmente na época da Conquista (ver Vander Velden, 2011: 27). Buscando sanar parte desta lacuna, Vander Velden se debruçou sobre os relatos dos cronistas, tratando particularmente da introdução das galinhas entre os Tupi da Costa. Neste trabalho, o autor revela o protagonismo adquirido pelo animal nas redes interétnicas desde o século XVI. Trazidas pelos europeus nas expedições que chegaram ao litoral atlântico da América do Sul, as galinhas foram rapidamente 43 incluídas nos circuitos de intercâmbio (Vander Velden, 2012b: 105) 24 . A disseminação das galinhas nas aldeias indígenas das Terras Baixas, inclusive, é relatada tanto nas fontes de cronistas, escritas nas primeiras décadas da Conquista, quanto naquelas escritas séculos depois desse episódio. Com base nestes relatos, é possível afirmar que houve na região um “processo contínuo de difusão, explosão populacional e aclimatação/adoção das galinhas domésticas entre os Tupi costeiros” (id: 108). Embora a reflexão de Vander Velden (e igualmente, os relatos de Léry e Caminha) digam respeito à costa brasileira, na Amazônia as redes de intercâmbio locais também abrangiam animais como objetos de troca. Ao contrário do litoral atlântico nos séculos XVI e XVII, em relação ao norte da Amazônia (especialmente na região das Guianas) têm-se muitas informações consistentes sobre rotas comerciais envolvendo índios e brancos (ver, p.ex., Butt-Colson, 1976; Fausto, 2001: 332). Tais circuitos se instauraram ao longo da Conquista, conforme os conquistadores adentravam o interior do continente, mas eram também anteriores à chegada dos europeus. Segundo Marcy Norton, antes da Conquista “there were already welldeveloped trading networks for familiarized animals among indigenous groups” (2015: 15). Além disso, o intercâmbio entre brancos e índios, ou entre grupos indígenas distintos, podia envolver tanto os animais introduzidos quanto os que já se faziam presentes antes da Conquista. Os animais trazidos pelos europeus, especificamente, não só instauravam novas redes de circulação de mercadorias como também fortaleciam aqueles já estabelecidos entre os grupos indígenas antes da chegada dos europeus. Como mostram Scaramelli & Scaramelli, certos itens europeus foram incorporados aos já existentes sistemas de transação nativos. Nas palavras dos autores, fontes arqueológicas e etnográficas apresentam a variedade “of other items that may have been circulating during this period, including hammocks, manioc graters, blowguns, shell beads, parrots and parakeets, turtle oil”, entre outros (2005: 153). Depois da chegada dos europeus, os cães domésticos também passaram a participar das redes de troca amazônicas. Embora o caso das Guianas seja especial e mereça uma análise mais detalhada, dados etnográficos provenientes de outras regiões 24 O trabalho de Marcy Norton (2015) sobre a circulação de galinhas nas redes de troca da região das Guianas, durante a Conquista, também é uma exceção ao usual pouco interesse da etnologia americanista quanto aos processos de introdução e circulação de animais domésticos na Amazônia. 44 da Amazônia confirmam que o cão europeu continua a figurar como um mercadoria nas relações entre índios e brancos, bem como nos intercâmbios entre grupos distintos. Referindo-se aos Achuar da Amazônia equatoriana, Descola afirma que os cães adquiridos com grupos distantes são os mais apreciados e valiosos. Independente de suas virtudes cinegéticas aparentes, os Achuar “se esforçam para conseguir alguns cães com as etnias vizinhas, que fazem o mesmo com eles” (2001: 232). Segundo Anne-Cristine Taylor, os Achuar adquirem os bens provenientes dos brancos por meio de suas redes com seus vizinhos, especialmente os Canelos. Nas palavras da autora, os Achuar reproduzem “the ‘forest indian’ facet of their identity (...) by trade against traditional goods, such as blowguns, feather headdresses, hunting dogs, and curare, items sought after by the Canelos” (2012: 139). Embora sejam poucos os dados etnográficos disponíveis, em outras regiões da Amazônia os cães também servem como mercadorias. Na região sub-andina, entre os Yanesha, os cães “can be bought, traded or obtained as gifts. Good hunting dogs are much in demand and if someone has a good hunting dog, especially a bitch, her puppies may be sold for high prices or exchanged advantageously” (Santos-Granero, c.p.). Já no Juruá-Purus, Métraux apontava que os cães se tornaram indispensáveis aos Kaxinawá, os quais pagavam “extravagant prices” por cães de caça bem treinados (1948: 666). Fazendo referência a grupos localizados em diversas regiões da Amazônia, Koster resume a posição dos cães nesses circuitos: Dogs can be acquired in a variety of ways. Many are purchased or traded, as either adults or juveniles. Adult dogs with a reputation for hunting preferred preys species may command a significant price, including shotguns, canoes, axes, machetes, or relatively large sums of cash (...). In some cases, dogs are traded through relatively elaborate exchange networks, and groups like the Waiwai in Guyana have developed reputations as sources of good dogs (Koster, 2009: 588). Como já apontado acima, o caso norte amazônico (especialmente das Guianas) merece atenção especial, tanto em relação às transações de animais em geral quanto em relação àquelas envolvendo cães. E isso parece remontar aos primórdios da Conquista, como já vimos. Em sua Historia general y natural de las Indias, redigida em meados do século XVI, Gonzalo Fernández de Oviedo Valdés já afirma que todos 45 os dias macacos “domesticados” eram negociados e levados pelos europeus à Espanha (Oviedo, 1992 [1545]: 50). Outros animais também aparecem em seu relato. Segundo Norton, “in addition to the monkeys and parrots, Oviedo wrote about various tamed creatures -- a sloth, a fox, and a bivana -- who came into European settlements as a result of trades with mainland Amerindians” (Norton, 2015: 44). O jesuíta italiano Filippo Salvatore Gilii, escrevendo dois século depois, refere-se também a macacos e pássaros nativos sendo adotados pelos europeus que exploravam a região das Guianas (1965 [1782]: 252). Ainda segundo o jesuíta, os cães introduzidos pelos conquistadores foram adotados e inseridos nas redes de troca: “todas las naciones (...) tienen perros por médio del comercio de unos com otros, y hacen suma estima de ellos, tanto para la caza como para la centinela de noche” (1965 [1782]: 192). Nas Guianas, os viajantes europeus no século XIX mencionam expedições de caça com a presença de cães – veja-se, por exemplo, o que diz Schomburgk (1841) sobre os Waiwai (apud Howard, 2001: 241). Segundo Walter Roth, à época vários grupos indígenas da região (sobretudo os Taruma e os Ye’kuana) treinavam cães de caça e os inseriam nas redes interétnicas para adquirir, por exemplo, venenos de cura, zarabatanas e machados. Para os Trio, especificamente, diz Roth que Hunting dogs constitute the most important trade product of the Trio. They breed these animais with great care and supply them not only to their nearest neighbors, the Joeka, but also via the Parou and Yari to the Boni bush negroes (1929: 165). Catherine Howard, em sua etnografia sobre os Waiwai, apresenta muitos dados sobre a importância dos cães nos sistemas etnográficos do norte da Amazônia. Ao lado de miçangas e papagaios, os cães caçadores são comumente inseridos nos intercâmbios com outros grupos da região. Estas relações são estabelecidas com diversos grupos: Tiriyó, localizados no Suriname, Wapixana, na Guiana Francesa, e Hixakyana e Waimiri-Atroari, no Brasil. Além dos grupos indígenas envolvidos nesta ampla rede, as transações envolvendo cães também eram feitas com grupos 46 quilombolas, como os Maroons25, e com os próprios brancos – com estes, o interesse era de receber objetos manufaturados (Howard, 2001: 229). O caso dos Waiwai parece ser peculiar apenas pela sua maior documentação. Tratando de outros grupos, a tese de Gabriel Coutinho Barbosa apresenta diversos dados e oferece uma interessante análise sobre o tema. Entre os Tiriyó, por exemplo, os cães de caça se tornaram no século XX um dos principais bens, sendo por isso criados, adestrados e treinados com o máximo de cuidado. Isso tornava os animais mais valiosos e, assim, pagava-se mais por eles (Coutinho Barbosa, 2007: 88). Entre os Wayana, por sua vez, na década de 1940-60 muitos cães eram criados para que fossem destinados à caça e ao intercâmbio com outros grupos (id: idem). Entre os Boni26, por fim, os cães caçadores eram adquiridos de outros grupos indígenas e, posteriormente, eram vendidos nas cidades da Guiana Francesa com uma margem de lucro (idem: 88). Coutinho Barbosa apresenta um diagrama que mostra a participação dos cães nas redes guianenses: Trocar os cães com outros grupos, ou com os próprios brancos, era um dos meios pelos quais os escassos produtos manufaturados podiam ser obtidos. Por 25 Em sua tese, Howard mostra que a extensa rede de relações envolvendo os cães no norte da Amazônia só é possível porque os Maroons não criam cães. Ao invés disso, eles obtém o animal com os Waiwai e fazem-no chegar aos brancos no litoral. Nessas transações com os brancos, os Maroons adquirem as ferramentas que serão, depois, adquiridas pelos Waiwai, fechando o circuito (Howard, 2001: 248). 26 Grupo extinto localizado na região das Guianas. 47 “incorporarem os poderes sedutores e perigosos dos estrangeiros” (Howard, 2001: 227), estes produtos, como as miçangas de vidro, eram considerados prototípicos de influência e do ideal de pacificação27. Com efeito, para que a negociação pudesse se concretizar os cães eram tratados com cuidados e treinados, processos sobre os quais falaremos mais nos próximos dois capítulos. Nesse sentido, segundo Howard, “the growth of a pet's body, in other words, was not considered a purely "natural" process, but the result o f repeated investments of care and nurture from humans” (idem: 243). A posse, a criação e o cuidado com os cães nas Guianas permitiram que o leque de relações dos índios com o exterior fosse ampliado. Assim, embora não seja minha pretensão reduzir a importância do animal na região a esta qualidade relacional, os dados aqui apresentados evidenciam que os cães não eram valorizados apenas pelas suas habilidades cinegéticas. Como diz Catherine Howard, inserir-se nas redes interétnicas, e partir dessa inserção, expandir-se social e espacialmente, é o que leva os Waiwai a valorizarem os cães (2001: 248). Ou, nas palavras da linguista Eithne Carlin: In general, trade was not just a matter of acquiring goods, it was a communicative act literally performed by making a gesture to the outside, a means toward extending and maintaining one’s familial and social network. It created continuity and expansion at the same time. So buying a cassava grater from a Taruma or a Waiwai, for example, served to keep open that trade route, foster good relations, and catch up on news from the outside (Carlin, 2011: 234). Como diz Gabriel Coutinho Barbosa (2007: 107), as transações nas Guianas que envolvem animais domésticos e/ou bens exógenos (como artigos industrializados) são como o “protótipo” e a “versão mais acabada” dos círculos de intercâmbio da região (id: 107). Tudo aquilo que é adquirido nesses círculos -- bens industrializados e animais domésticos -- deve ser submetido a um processo de “incorporação social”. A descrição de Howard do processo de humanização dos cães entre os Waiawai vai ao encontro do argumento de Coutinho Barbosa sobre o processo de 27 Segundo Howard, para pacificar os grupos isolados os Waiwai devem presenteá-los com produtos manufaturados: “gift-giving, knowledge, and beauty exemplify the ethos of "peaceful people" (tawakemkomo)” (2001: 226). 48 incorporação da alteridade entre os povos indígenas das Guianas. Para a autora, vestir os cães com adornos humanos, dar-lhes diversos banhos ao longo do dia, alimentá-los com comida cozida e pintá-los com urucum são, mais do que um ideal de embelezamento, cuidados que respondem à necessidade de humanização dos cães (2001: 241-5). 1.5 Considerações finais No início do capítulo, ao tratarmos do tema da expansão biológica europeia, vimos que parece haver uma diferença na forma pela qual os cães foram utilizados na período da Conquista da Amazônia, entre os séculos XV e XVIII, em comparação ao mesmo período na América espanhola em geral. Salvo a expedição de Orellana, não conheço dados sobre os cães exerceram funções militares na Conquista da região. Não obstante, nossa pretensão foi a de mostrar que, mesmo com funções diferentes, os cães também foram “pontas de lança” do processo colonizador na Amazônia. Posteriormente, foi apresentada a discussão a respeito da presença ou não de canídeos na região das TBAS. Mais do que contribuir com dados primários para essa discussão, contudo, restringi-me a problematizar alguns dos argumentos. Intentei mostrar que as evidências vocabulares (isto é, a ocorrência de nomes nativos aos cães nas regiões das Guianas e Orinoco) não sustentam, por si sós, o argumento da presença de cães na região antes dos brancos. Além disso, busquei levantar novas questões, como a de por que os índios se interessaram em familiarizar apenas a espécie Canis lupus familiares, e não aquelas que já estavam presentes antes da Conquista. Posteriormente, tratamos dos processos de disseminação dos cães pela Amazônia. Especificamente em relação às redes de troca das Guianas, vimos, com base nos autores especialistas na região, que elas devem ser compreendidas para além de seu aspecto econômico. E nesse sentido, a valorização dos cães deve ser pensada também para além da produtividade que o animal propicia na caça. Em outras palavras, se as trocas não podem ser entendidas exclusivamente de um ponto de vista econômico, os objetos negociados também não podem ser compreendidos apenas de acordo com seu valor de troca. Nesse sentido, os cães foram inseridos e valorizados nas redes guianenses por serem considerados agentes exteriores (isto é, figuras da alteridade que deveriam ser pacificados/humanizados no interior da aldeia) ao mesmo tempo que mecanismos de produção da pacificação do exterior (quando inseridos como objetos nas relações com outros grupos e com os brancos). 49 Os cães, portanto, atuavam como mediadores. Instauravam relações com os brancos, já que foram introduzidos pelos colonizadores; e instauravam relações com grupos estrangeiros, quando incluídos como objetos de troca nesse “exercício de diplomacia” que é o intercâmbio nas Guianas (Howard, 2001: 249). A humanização e o treinamento dos cães, de modo a torná-los valiosos “substitutos simbólicos de pessoas” (id: 247, grifos meus). Enfim, os cães tiveram, desde a Conquista, uma qualidade relacional que permitia aos índios estabelecer relações de troca com os brancos e com grupos vizinhos. Embora muitos dos dados aqui expostos sejam provenientes da região das Guianas, a qualidade relacional do cão não é redutível a esta região específica. Entre os Karitiana, por exemplo, os cães são seres intermediários ou um elo entre o mundo dos brancos e dos Karitiana, pelo fato de serem adquiridos nas cidades. Seus nomes, sempre mencionados em português28, são nesse sentido vinculados “ao universo das atividades daqueles que o trouxeram” (Vander Velden, 2012: 64). De modo semelhante, entre os Awá-Guajá, povo tupi-guarani do Maranhão, os cães são designados como karaí nimá, termo que significa “xerimbabo dos brancos”29. (2010: 223). Segundo afirma Uirá Garcia, talvez seja por esse estatuto de “xerimbabo dos brancos” que os donos dos cães habitualmente se comuniquem com o animal em português -- mesmo que, no cotidiano, e entre humanos, apenas falem a língua nativa (2010: 293). Com a análise sobre a introdução dos cães nas Terras Baixas da América do Sul, procurei contribuir minimamente ao tema da expansão biológica europeia no Novo Mundo. Em outras palavras, busquei, neste capítulo, contribuir para uma compreensão melhor sobre como, em uma região específica (TBAS, especialmente Amazônia), um animal específico (o cão) foi utilizado pelos conquistadores e adotados pelos índios. Mesmo que a minha análise aqui careça de dados primários e de fontes arqueológicas precisas, espero ter deixado claro como os cães, especificamente, foram animais de suma importância, tanto para os índios quanto para os brancos, no processo de intercâmbio de animais entre povos indígenas e brancos 28 Como veremos no próximo capítulo, nos grupos localizados na região das Guianas os nomes dos cães também estão vinculados ao universo dos brancos. Entre os Wayana, por exemplo, os cães são nomeados por termos em português, sempre considerados por eles excêntricos: maçã, bolo, entre outros (Linke, c.p.); há outros casos, como o dos Hixkaryana (Luísa Lucas, c.p.), nos quais os nomes dos cães são semelhantes aos nomes de personagens de novelas televisivas assistidas nas aldeias. 29 Nima é cognato de outros termos tupi-guarani, como mimawa ou mimbaua. A partir desse cognato se forma o termo xerimbabo, usando-se a flexão de primeira pessoa xeremimawa (Fausto, c.p.). 50 (ver, e.g., Buarque de Holanda, 1975: 199). Em outras palavras, assim como no processo de expansão colonial os cães foram importantes aos brancos, para os índios eles também o foram, no sentido de que intermediaram relações com o exterior e com a alteridade, em geral. 51 Capítulo 2: “Um jaguar que você alimenta”: relações com o cão na Amazônia indígena No capítulo anterior, busquei traçar o modo pelo qual os cães foram introduzidos na Amazônia, ainda no século XVI, e a forma pela qual eles têm se disseminado pela região até os dias atuais. Como mostrado, se hoje os cães estão presentes na maioria das aldeias indígenas amazônicas, isso é efeito das expedições promovidas pelos brancos na região e também consequência das redes de intercâmbio interétnicas nas quais o animal esteve envolvido como objeto de troca. No caso das Guianas, especialmente, os cães adquiriram importância entre os povos ali localizados ao se inserirem nas redes de intercâmbio, e se tornaram também “substitutos simbólicos das pessoas” no interior dos grupos locais (Howard, 2001: 247). Neste capítulo, trataremos dos modos de relação dos índios com os cães. Embora esta seja uma tarefa difícil, em virtude da diversidade dos dados, a apresentação dos meus dados se seguirá paralelamente à tentativa de sublinharmos certas relações que aparecem com frequência na região amazônica. O capítulo se divide em quatro seções: a primeira tratará da forma pela qual os cães são concebidos; a segunda discutirá o modo pelo qual são alimentados, depois de um breve resumo sobre a alimentação na antropologia; a terceira mostrará como geralmente são tratados pelos humanos em geral; e finalmente, será abordada a relação dos cães com seus donos e o tipo de controle que estes exercem sobre o animal. 2.1 A concepção dos cães: de excêntricos a associais Como mostra a literatura sobre a introdução e disseminação dos cães nas Terras Baixas da América do Sul, os brancos que exploraram a região durante e após a Conquista atribuíram ao animal as funções de proteção de seus acampamentos (ver cap. 1; Wied-Neuwied, 1967: 188; Magalhães, 1942: 79). Com a ajuda dos cães, os brancos se protegiam dos assaltos promovidos pelos índios ou dos ataques das onças. Além disso, o animal foi utilizado como auxiliares na atividade cinegética. De mesmo modo, quando familiarizados pelos próprios índios, os cães se ocuparam igualmente a cumprir funções de caça e de proteção. Como mostra Luís Cascudo, os cães foram “a maior conquista dos índios” e, como “companheiros incomparáveis”, tornaram-se 52 apreciados tanto pela sua companhia quanto pela sua utilidade (1967: 153). Porém, além de não poder ser generalizada a todos os povos da região amazônica, esta visão positiva da introdução dos cães não parece corresponder à forma pela qual o animal é concebido. O caráter associal dos cães é a característica mais destacada pelos índios. O descumprimento das regras sociais como marca do animal aparece em narrativas míticas, mas também nas conversas cotidianas. Seu caráter incestuoso, por exemplo, é mencionado em um mito jê que narra o intercurso sexual entre mãe e irmã ou mãe e sobrinha. Neste relato, a pessoa que comete o incesto se transforma em coisa ou bicho (me-boiá), algo como “animais monstruosos semelhantes em certos aspectos a cães” (Coelho de Souza, 2002: 519). A associação de alguém incestuoso à figura canina ocorre também entre os Piro, onde casar-se com a filha de um tio materno30 significa tornar-se cão, isto é, “gente de jeito nenhum” (Gow, 1997: 46). A associalidade do cão não se justifica apenas por seu caráter incestuoso e promiscuidade sexual. Em muitos casos, são tidos como desprovidos de habilidades necessárias ao bom funcionamento da ordem social. Tal característica se evidencia, por exemplo, na visão dos Matis sobre os hábitos alimentares do animal, uma vez que se alimentam de fezes dos humanos. Segundo Erikson, o estatuto coprófago do cão e suas violações das regras do parentesco dificultam a sua socialização (2011: 22). Além dos Matis, o estatuto coprófago do cão é marcado pelos Karitiana. Segundo Vander Velden, além de sexualmente promíscuos e incestuosos, os cães são considerados animais sujos por se alimentarem de fezes (2009: 7). Entre os Apinayé, os cães são os animais “por excelência” desprovidos de piâm, um índice imprescindível para uma relação social operar bem. Nas palavras de DaMatta (1976: 79): Pessoas que “egoisticamente deixam de seguir as prescrições mais importantes da cultura apinayé” são ditas piâm ket, “sem piâm” e comparadas a cães, isto é, a “animais que compreendem tudo o que é dito, mas não obstante continuam a agir anti-socialmente” (DaMatta 1979: 100). 30 Gow se refere, aqui, ao tio materno real, isto é, ao irmão real ou próximo da mãe (1997: 46). 53 Como visto na citação, os cães entre os Apinayé deixaram de ter uma linguagem inteligível aos humanos. Segundo Marcela Coelho de Souza, com a perda da linguagem inteligível, os cães perderam também o discurso polido do parentesco – na medida em que o “fundamento da linguagem humana é o parentesco” (2002: 613). Assim como neste grupo jê, na mitologia dos Piro os cães possuíam uma linguagem sofisticada, mas perderam-na por descumprirem certos tabus. Por isso, hoje comunicam-se com os humanos apenas por meio de latidos, uivos e rosnados (Gow 1997: 46). Além de incestuosos e coprófagos, os cães são vistos como animais traiçoeiros e pouco confiáveis, como ocorre entre os Karitiana (Vander Velden 2009: 7), ou fuxiqueiros e descomedidos, como entre os Marubo (Cesarino, 2008: 271). Tendo em vista estes dados, que revelam uma concepção do cão como possuindo uma socialidade defectiva, a pergunta que nos cabe tratar neste capítulo é: em que medida tal concepção sobre os cães interfere na relação dos índios com eles? Mesmo associais e incestuosos, os cães podem ser filhos (parentes) adotivos dos humanos? Em outras palavras, aquilo que nos interessa neste capítulo é analisar como os humanos se relacionam com os cães. O tratamento, o cuidado e a alimentação são as vias pelas quais tentarei responder a estas perguntas. Comecemos com a alimentação. 2.2. A alimentação dos cães 2.2.1. Teorizações da alimentação na antropologia e na etnologia Como mostra Sidney Mintz, a comida e o ato de alimentar são de grande interesse à antropologia desde a sua consolidação como “ciência da observação de sociedades e práticas sócio-culturais” (2001: 31). Ainda no século XIX, por exemplo, Robertson Smith demonstrou o papel determinante que a alimentação desempenhava na organização social dos Semitas (Smith, 1889). Pouco tempo depois, Malinowski observou como a compreensão dos modos de distribuição de comida entre os Trobriand era determinante para o entendimento de fenômenos como o exercício de poder dos chefes nativos (Malinowski, 1965 [1935]). Apesar da ênfase nos estudos sobre alimentação nos primórdios da antropologia, no início do século XX o tema passou a ser considerado prosaico e pouco importante em comparação, por exemplo, aos temas da organização social, a política, magia ou religião. De acordo com Mintz, quase todas as etnografias que tratavam dos hábitos alimentares de certo grupo nativo restringiam tal análise aos 54 capítulos dedicados à subsistência e economia doméstica nativas. Na maioria das vezes, estes capítulos se subordinavam àqueles dedicados aos temas mais diretamente ligados à organização social. Mesmo na década de 1980, com a publicação do livro Cooking, cuisine and class, de Jack Goody (1982), “o estudo antropológico da comida ainda não tinha renascido como tema” (Mintz, 2001: 32). Na etnologia americanista, a alimentação adquiriu projeção importante nas etnografias realizadas a partir da década de 1980. As práticas alimentares foram pensadas à luz da comensalidade, a qual seria um dispositivo de produção de identidades e de parentesco. Em Comendo como gente, por exemplo, Aparecida Vilaça observa que a comensalidade entre os Wari’: está tão intrinsicamente relacionada às relações de identidade (substância), que pode mesmo produzi-las. Assim, aqueles que compartilham seus alimentos são incorporados como consubstanciais, como é o caso dos afins reais, e dos xamãs, ao decidirem “acompanhar” animais de outras espécies (Vilaça, 1992: 292). A associação da alimentação na Amazônia a outros modos de consumo -como a comensalidade e ao canibalismo -- é bastante recorrente na literatura. No livro de Vilaça supracitado, comensalidade e canibalismo são mutuamente excludentes: aqueles que comem juntos não se comem. Com efeito, os cognatos próximos que se alimentam juntos se opõem aos afins, assim como, numa perspectiva mais ampla, os Wari’ como um todo se diferenciam das espécies animais por comerem juntos (1992: 292). A distinção entre alimentação e canibalismo, por sua vez, aparece na etnografia de Carlos Fausto sobre os Parakanã. Segundo o autor, a forma de consumo canibal -própria das atividades guerreiras -- visa a produção ontológica de pessoas, enquanto que a forma de consumo própria da atividade cinegética visa o crescimento vegetativo do indivíduo (Fausto, 2001: 538). Nesse sentido, a distinção entre canibalismo e alimentação apareceria entre os Parakanã, respectivamente, como “equivalente àquela entre um consumo voltado para o desenvolvimento das capacidades subjetivas da pessoa e outro voltado para a produção do corpo físico” (2002: 7-8). Não obstante, a distinção entre canibalismo e alimentação proposta por Fausto em sua etnografia foi posteriormente expandida, pelo próprio autor, para além do caso dos Parakanã. Fausto argumentará que, sob a ótica da fabricação do parentesco, 55 canibalismo e alimentação (ou a comensalidade) são processos de transformação encadeados: “um que resulta do comer alguém (o canibalismo), outro que decorre de se comer como e com alguém (a comensalidade)” (Fausto, 2002: 8, grifos do autor). A diferenciação entre um e outro modo de consumo ocorre de acordo com o estatuto daquilo que é consumido: quando a presa é dessubjetivada e reduzida a objeto -principalmente por meio do fogo culinário (isto é, do cozimento) -- o consumo seria não canibal; de forma diferente, quando há a devoração literal ou simbólica do outro em sua condição crua (ou de pessoa, isto é, default), este seria o consumo canibal (Fausto, 2002: 13). Ao rediscutir a distinção entre canibalismo e comensalidade, Fausto mostrou como estas duas modalidades de consumo estão articuladas. Não obstante, a alimentação stricto sensu permaneceu subordinada a estas outras formas de consumo. Uma inflexão a este paradigma é proposta por Costa, em sua análise das relações de parentesco entre os Kanamari. Distinta da comensalidade, a noção de ‘alimentação’ (feeding) para Costa pode ser pensada como mecanismo produtor de dependência (Costa, 2013). Aqui, a alimentação deixa de ser mero consumo e se torna um “ato de dar de comer”, que implica uma relação assimétrica entre aquele que alimenta e o alimentado. Esta torção no conceito de alimentação aproxima o trabalho de Costa aos trabalhos de Grotti (2007), sobre as relações de “nutrição” (nurture) entre os Trio e os Akuryo, e também aos trabalhos de McCallum, sobre os Kaxinawá, nos quais o conceito de feeding aparece como um operador básico do parentesco: “the principal means of ‘making kinship’ [...] is the act of feeding”31 (1990: 416-17). De acordo com os seus dados etnográficos, Costa mostra que as orientações simétricas da comensalidade derivam do vetor assimétrico característico da alimentação, cuja prática causa no paciente alimentado uma necessidade em relação ao agente que o alimenta (Costa, 2013; 2017). Esta brevíssima leitura sobre algumas das abordagens da etnologia amazônica acerca dos modos de alimentação, permite-nos melhor tratar do caso específico dos cães, que é nosso objeto precípuo. Embora não sejam muitos os trabalhos que tratam da alimentação de animais em geral (como os trabalhos de Costa, Erikson e Vander 31 Na visão de Costa (2017), embora McCallum reconheça a distinção entre alimentação e comensalidade, a primeira relação é diluída pela segunda, a qual passa a ser tratada como um dispositivo abrangente e genérico da produção de identidade. Sobre uma discussão mais abrangente acerca deste tema, ver Fausto & Costa, 2013. 56 Velden), estes – além daqueles sobre alimentação de seres em geral (como os de Vilaça e Fausto, já citados) -- serão importantes para tratarmos da alimentação dos cães em geral. O ato de dar de comer aos cães, ou a ausência deste ato -- tanto quanto as implicações de cada uma dessas relações -- revelam aspectos interessantes sobre o controle que os donos exercem sobre o animal. 2.2.2 A alimentação dos cães na Amazônia Ao falarmos sobre como os cães são concebidos em alguns povos amazônicos, vimos acima que a característica mais ressaltada em relação ao animal é a sua socialidade defectiva. Seja pela sua promiscuidade sexual, pelo seu estatuto coprófago, ou por outros motivos, os cães são considerados animais que não possuem os requisitos necessários ao bom convívio social. Podemos analisar as relações de alimentação dos cães na Amazônia com base nesta concepção, já que na maioria dos casos, eles precisam obter comida por conta própria, sem o auxílio de seus donos. Já que alimentar ou ser alimentado significa relacionar-se de modo correto (como mostra Erikson, 2011), a (falta de) alimentação dos cães seria um dos motivos que explicaria o seu estatuto ambíguo (e vice-versa). Porém, esta conclusão é precipitada, não apenas por não dar conta dos casos onde os cães são de fato alimentados (como veremos mais adiante), como também pelas implicações do regime alimentar em termos de controle e dependência. Tratemos, pois, daquilo que há de mais comum na Amazônia em relação à alimentação dos cães. Na maioria dos grupos onde estão presentes, os cães devem encontrar meios próprios para se alimentar. De um modo geral, eles “se buscan la vida” para que consigam sobreviver, como diz Santos-Granero sobre os Yanesha. Aí, os cães precisam caçar presas de pequeno porte ou vasculhar os arredores das casas para obter comida (Santos-Granero, c.p.). De modo similar, entre os Kanamari, os cães precisam resistir para não morrer de fome. Como mostra Costa (c.p), esta resistência incessante significa buscar os restos de comida jogados fora pelos humanos ou os pedaços de carne que caem no chão quando estes estão se alimentando. Em outros casos, como entre os Paumari, Koripako, Hixkaryana e 57 Enawene-Nawe, os cães também dependem dos restos de comida para se alimentar32 (Bonilla c.p.; Xavier, c.p; Luísa Lucas, c.p.; Lima Rodgers, c.p.). A despreocupação dos índios com relação à alimentação dos cães rendeu comentários por parte de cronistas e etnógrafos. Falando sobre os Botocudos, o príncipe Wied-Neuwied ressalta que os índios têm como companheiros cães magros, e que os utilizam muito para caçar. Porém, “alimentam-nos muito mal, motivo pelo qual são ordinariamente pérfidos e investem, ladrando, sobre os estranhos” (1942[1815]: 294). Em relação aos Tapirapé, Herbert Baldus nota que os cães são proibidos de chegar perto das panelas com comida, e assim, na falta de um sustento regular, o que resta ao animal é roubar o alimento dos humanos – ocasião essa que, constantemente, é razão para “enxotar os cães com pauladas”. Como mostra o autor, os cães passam muita fome nas aldeias e por isso precisam adotar um “comportamento não canino: ser frugívoros e trepadores”, ou até mesmo se alimentarem de insetos: Os cães são sempre famintos, e [de tão magros] ficam com suas costelas bem à mostra, roubando restos de comida e, às vezes, até bananas, tendo tido em 1935, entre os seus meios de sustento, só um único realmente inesgotável e não proibido: a colheita de baratas. E assim como ele tem de mastigar estes insetos em vez de chupar num gentil seio tapirapé, também recebe, em lugar de carícias, só maldições, pauladas e pontapés, ainda que dados, em geral, com certa clemência e, até, suavidade (1970: 182). Baldus, contudo, deixa claro que esta regra não pode ser aplicada aos cães de pouca idade. Os filhotes de cães entre os Tapirapé são inclusive amamentados pelas mulheres: Com não menos cuidados, as mulheres de Tampiitaua tratavam os filhotes dos cães, amamentando-os pessoalmente ou passando comida mastigada diretamente de sua própria boca para a boca do 32 Dentre os 23 pesquisadores que responderam à pergunta sobre a alimentação dos cães, 13 deles citaram exatamente a palavra “restos” para falar dos hábitos alimentares do animal em seus respectivos grupos de pesquisa. 58 cãozinho, como também índias de outras regiões do Brasil costumam alimentar a cria de diversos animais (Baldus, 1970: 459). A distinção entre o tratamento dos cães filhotes e dos cães adultos se manifesta também entre outros povos indígenas da Amazônia. Entre os Xikrin, os cães são propriamente alimentados apenas quando filhotes. Quando se tornam adultos, este cuidado com a alimentação diminui consideravelmente (Gordon, c.p.). Já entre os Nambiquara (Mamaindê), enquanto os cães adultos são deixados à própria sorte, comendo ossos e peles com pelos de animais caçados, os filhotes podem ser alimentados pelas mulheres e pelas crianças com as mesmas comidas que os humanos consomem (como contou-me Miller em comunicação pessoal, os Mamaindê inclusive pediam a ela leite em pó para dar aos filhotes de cães). Além da idade, a presença do cão na atividade cinegética é um fator que condiciona o seu modo de alimentação. Em particular nas Guianas, cães bons de caça costumam ser mais bem tratados. Assim, por exemplo, entre os Tarumã33, os cães de caça eram bem alimentados, tratados com carinho e colocados para dormir em locais especiais (Cruls, 1944: 75). Entre os Wayana, de modo semelhante, os cães de caça recebem de seus donos partes dos frutos da caça, e aqueles que não são eficazes na atividade “são deixados à própria sorte e vivem do que conseguem roubar” (Linke, c.p). Na região das Guianas, em geral, parece ser comum que os cães ajudantes da caça recebam de seus donos alguma parte do animal que caçaram (cf. Howard, 2001: 243). Nestes casos específicos, portanto, pode-se dizer que os cães são de fato alimentados. Adiante, voltaremos a tratar deste tópico. Agora, passemos à descrição do tratamento dos cães em geral. 2.3 O tratamento dos cães: entre desprezo e cuidados Encontrar um fio condutor que delineie um modo constante e generalizado com que os índios tratam os seus cães não é tarefa simples. Assim como ocorre em várias regiões do globo -- da África às Américas, dos Mkako de Camarões (CopetRougier, 1988) aos Teenek do México ou aos Rock-Cree, no Canadá (Ariel de Vidas, 2002; Brightman, 1993) -- a ambiguidade é uma marca acentuada no que diz respeito 33 De acordo com Halbmayer (2013:171), os Tarumã de língua arawak foram “caribizados” ao serem incorporados aos Waiwai. Contudo, há informações de que ainda existem falantes dessa língua nas Guianas. 59 ao tratamento dos cães na Amazônia. Nossa tarefa, nesse sentido, consiste antes em explicar os motivos que levam a esta constante variação no modo de tratar os cães. Em outras palavras, trata-se de apresentar os momentos nos quais os cães são bem tratados e aqueles nos quais são maltratados e, a partir de dados etnográficos, oferecer interpretações que expliquem a razão de tal variação. Mesmo que haja bastante variação, o maltrato e o desprezo parecem ser dominantes em relação ao cuidado e à preocupação com os cães nas aldeias. Entre os Hixkaryana, por exemplo, crianças brincam com cães e, nestas brincadeiras, atingemnos com paus, pedras, e também os queimam com pedaços de lenha com brasas (Luísa Lucas, c.p.). Entre os Nambiquara, de modo semelhante, mesmo os filhotes -que são mais bem tratados em comparação aos adultos -- podem ser mortos nas brincadeiras das crianças (Miller, c.p.). Santos-Granero observa igualmente que os cães são maltratados pelas crianças entre os Yanesha. Nas palavras do autor, “children may be, in fact, quite cruel with dogs, pulling their tails or throwing stones or sticks to them” (c.p.). Estes casos de maus-tratos ocorrem nas brincadeiras das crianças com os cães, como mostrado, mas também em outras três situações: no contexto da caça; quando os cães tentam roubar comidas; e, por fim, quando arriscam entrar nos espaços onde sua presença não é permitida. Em relação ao contexto da caça, Caco Xavier menciona o caso dos Koripako: É comum a prática de decepar orelhas e rabos de cachorros que 'deixam a caça escapar'. Os donos cortam as orelhas (pontas, metades, ou mesmo inteiras) e até mesmo as cozinham e dão pro próprio cachorro comer, dizendo: "Perdeu a caça? Agora vai ter que comer teu próprio corpo!". Dizem que isso é uma espécie de punição e também de 'pedagogia', pra que o cachorro não repita os procedimentos relapsos. Alguns, no entanto, parecem 'não aprender'. Um cachorro negro do principal pastor da comunidade de Jerusalém, forte e muito agressivo, tem as duas orelhas decepadas por inteiro com terçado (Xavier, c.p). Quando descumprem a ordem de não entrar na casa, os cães também são maltratados. Entre os Yanesha, há casos em que mulheres atiram água fervente nos cães quando estes se aproximam demais das casas ou, mais especificamente, do espaço onde a 60 comida está sendo preparada. Os homens, por sua vez, disparam contra os cães “whatever they find at hand, including a burning stick from the fire” (Santos-Granero, c.p.). Embora estejam sujeitos ao maltrato nestas situações, os cães são também companheiros na caça e, em alguns casos, cuidados. Entre os Chané, são deixados de lado e muitas vezes morrem por falta de alimento. Não obstante, o dono do cão se sente ofendido caso o animal seja maltratado por algum outro membro da aldeia (Villar, 2005: 500). Esta ambiguidade pode ser encontrada também entre os Paumari, onde os cães são, em geral, constantemente maltratados. Quando adoecem, contudo, estes mesmos cães despertam tristeza em seus donos (Bonilla, c.p.). De modo similar, entre os Xikrin os cães estão sempre magros, doentes com verminoses e sarna. Porém, caso algum deles morra por acidente, seu dono enfurece-se com aquele que causou o infortúnio. Um exemplo desse caso foi narrado por Gordon (c.p): na ocasião da morte de um cão por um atropelamento cometido por um funcionário branco, a dona do cão passou semanas reclamando do caso e exigiu que o funcionário lhe desse outro cão. Tal ambiguidade ocorre também entre os Waiwai, onde, segundo Caixeta Queiroz (c.p.), os cães são em geral maltratados e mal alimentados, embora nunca sejam abandonados por completo. Seus donos sentem muito ciúmes e não veem com bons olhos caso o animal seja maltratado por outra pessoa. Assim como vimos no capítulo anterior, o caso dos Waiwai é mais complicado e merece atenção especial. Neste grupo, mesmo que maltratados pelos homens, os cães são bastante apreciados pelas mulheres, as quais se denominam “mães” do animal. Sob os cuidados da mãe, os cães são levados mais de uma vez ao dia para banharem-se no rio, têm seus piolhos e larvas sempre extraídos com cuidado e, por fim, são também revestidos com urucum para “parecerem bonitos” (Howard, 2002: 240). Segundo Howard, estes cuidados com os cães são processos de crescimento (growth) do corpo do animal (id: idem). Da mesma forma como entre os Waiwai, as mulheres Achuar cuidam dos cães com grande cuidado. Como mostra Descola, os cães adquiridos em comunidades vizinhas são especialmente valorizados, sendo cuidados, alimentados e treinados pelas mulheres (Descola, 2006). O caso dos Achuar evidencia o ponto que pretendo mostrar: o cuidado dos índios para com os cães só se torna proeminente em situações específicas. Ao passo que Descola aponta para o caráter exógeno do cão como índice de sua valorização, os dados que recolhi apontam principalmente para outros dois fatores: a idade do animal 61 e a sua participação na caça. Em relação à idade, é comum a diferenciação entre os filhotes de cães e os adultos. Entre os Paumari, por exemplo, “os filhotes são extremamente bem tratados, como crianças mesmo, e depois de adulto a coisa muda” (Bonilla, c.p.). De modo a deixar a leitura dos dados menos cansativa, listo abaixo alguns exemplos para mostrar como esta característica é recorrente na Amazônia: De um modo geral, os Mamaindê dão aos cachorros o mínimo necessário para Nambiquara (Mamaindê) Joana Miller (c.p) sua sobrevivência. Apenas os filhotes bem pequenos são cuidados pelas crianças e mulheres (mas, mesmo assim, muitos não sobrevivem); Cão preguiçoso que não acompanha o Ingarikó Virginia Amaral (c.p) dono na roça e em outras atividades é mal tratado, mas os filhotes recebem mais atenção (isto é, são melhor alimentados e são banhados); Os cães em geral são maltratados, mas Tikuna os filhotes são tratados com muito Jean Pierre Goulard (c.p) carinho e atenção, exclusivamente pelas mulheres; Muitos cães são maltratados quando Yanesha Fernando Santos-Granero (c.p) descumprem as ordens de seus donos, mas os filhotes são tratados sempre de forma mais gentil; Quando os cães ameaçam ou insistem Trumai Emmanuel de Viene (c.p) fazer algo desaprovado, são feridos pelos donos. Porém, os filhotes são melhor tratados. 62 Os nossos dados também apontam para o fato de que é possível que um cão seja cuidado de maneira especial quando passa a participar com sucesso da atividade cinegética. Entre os Bororo, segundo Christopher Crocker, os cães despertam preocupação em seus donos apenas quando são úteis na caça. Como aponta o autor, um bom cão de caça “recebe mais cuidado do que um cão ordinário” (1985: 31). A diferença com a qual um dono se relaciona com o cão também varia de acordo com sua capacidade cinegética, entre os Yanesha. Segundo Santos-Granero (c.p.), os cães não apreciados pela sua habilidade na caça podem ser mortos quando destroem algum bem precioso ou quando se apropriam dos alimentos dos humanos. Por outro lado, os cães bons de caça dão “orgulho” a seus donos e são por eles mais bem cuidados. Resumidamente, como diz o autor, “os cães são tratados de acordo com o valor a eles atribuídos”, isto é, de acordo com sua habilidade na caça34. Não podemos deixar de mencionar a diferença de gênero em relação aos cuidados dos cães. De modo geral, são as mulheres que exercem este cuidado. Alguns dos dados que atestam a recorrência deste fato, inclusive, já foram implicitamente expostos nesse capítulo35. Na longa citação que fizemos ao Baldus, fora mencionado que, entre os Tapirapé, os filhotes dos cães são amamentados, cuidados e alimentados especialmente pelas mulheres da aldeia (Baldus, 1970: 459). Nos outros casos descritos de alimentação dos cães, a figura feminina aparece como responsável por este cuidado entre os Nambiquara (Mamaindê), segundo Miller (c.p.). Já entre os Koripako, onde os cães se alimentam principalmente dos restos de comida, Xavier (c.p.) notou que “algumas mulheres jogavam 'propositalmente' porções de restos de comida para alguns cães”. Dar de comer é a principal forma pela qual as mulheres cuidam de seus cães. Porém, não é a única. Entre os Siona Tukano, por exemplo, as mulheres fornecem remédios aos cães e se responsabilizam por eles quando chegam da caça machucados (Langdon, c.p.). Entre os Aguaruna, as mulheres são responsáveis pelos cães quando 34 Há outros casos etnográficos que reforçam a afirmação de que o tratamento dos cães caçadores é diferente dos que não participam da atividade. Entre os Trio, os cães que não caçam “suffer pretty badly” (Brightman, c.p.); entre os Koripako (Xavier, c.p.), um cão passa a ser observado e melhor cuidado (como um investimento) quando “se vislumbra a possibilidade do animal vir a ser um bom caçador”; entre os Wayana um cão considerado bom caçador será bem tratado (Linke, c.p); e entre os Kaxinawá (McCallum, c.p.), finalmente, os cães que são bons de caça são melhor tratados em relação aos demais, constantemente maltratados. 35 Essa característica geral não se aplica apenas aos cães. Entre os Kanamari, são as mulheres que alimentam e criam os demais animais de estimação e, segundo Luiz Costa, “esta divisão do trabalho é comum em toda a Amazônia” (2013: 478). 63 estes acompanham seus donos na caça. Buscando incitar a destreza do animal e evitar que ele se machuque, os cantos entoados no momento preliminar à caça denotam claramente a importância que as mulheres assumem no cuidado dos cães. Nas palavras de Brown, “the singer urges his wife to use her newest and most powerful songs to bring luck to the hunting dog” (1985: 81).36 Entre os Hupda, assim como entre os Aguaruna, a atuação das mulheres na caça é fundamental aos cães. Segundo Barreto, as mulheres utilizam “meios simbólicos” para se comunicarem com o cão na mata e, então, incentivá-lo a não desistir da presa: “He co, he co, he co, turti pū! (...) sigam em frente, não desistam, tenham fôlegos, e acuem pra dentro de pau oco caído” são algumas das palavras proferidas pelas mulheres aos cães (Barreto, s.d., 5-6). De um modo geral, a presença dos cães na caça é fundamental para que as mulheres participem da atividade, como mostra Jeremy Koster. Em sua síntese sobre a atuação do animal nos trópicos das terras baixas das Américas do Sul e Central, o autor mostra como, em muitos grupos, as mulheres assumem papeis importantes quando a atividade cinegética é praticada com o auxílio do cão. Segundo o autor, isto se justifica porque quando os cães estão presentes elas se tornam responsáveis pelo controle do animal -- por exemplo, manuseando a coleira que os prende (2009: 580). Ao falar sobre os Awá-Guajá, Garcia oferece um exemplo que vai ao encontro do que diz Koster: Talvez uma das transformações mais significativas desde a introdução dos cães na aldeia Jurití tenha sido a autonomia de caça que as mulheres passaram a experimentar. Os cães são os grandes companheiros de suas donas durante as caminhadas na floresta. Quando estão sem os homens -- que lhes fornecem a segurança necessária para se embrenharem sozinhas na mata -- são os cachorros que lhes garantem proteção contra as onças; esses animais são quase que uma espécie de "contra-jaguar", cuja selvageria é canalizável e domesticável (2012: 287). Embora as mulheres tenham grande importância no cuidado dos cães, é recorrente a associação do homem como o “dono” do animal: conforme Vander 36 Este canto será apresentado por inteiro e analisado no próximo capítulo, que trata da caça em geral. 64 Velden, entre os Karitiana há um vínculo entre cães e donos na medida em que cada homem caçador “possui” e leva seu cão (ou sua matilha) para a caça (Vander Velden, 2012: 180). Assim como ocorre com as casas, referidas pelo nome do homem (seu chefe) que a construiu, “é comum dizer-se que tal cachorro ‘é’ deste homem” (idem, 2009: 7). Entre os Wayana, como vimos, o cão que demonstra aptidão à caça será bem tratado e irá pertencer a um dono (um homem adulto), mas, caso contrário, isto é, caso seja preguiçoso, desengonçado e muito barulhento, tornar-se-á um "cão da aldeia" -- abandonado e sem dono (Linke, c.p.). Os cães entre os Trio também “pertencem” aos homens caçadores (Brightman, c.p.). Vê-se, portanto, que em alguns grupos a propriedade do cão por parte de um dono está diretamente ligada à atuação do animal na caça: entre os Kanamari, os cães de caça são propriedade do homem. E além dos Wayana e dos Trio, em outros grupos da região das Guianas este caso é recorrente: entre os Hixkaryana, os cachorros de caça pertencem aos homens caçadores (Lucas, c.p.), e o mesmo ocorre entre os Waiwai, grupo no qual os cães passam muito tempo no domínio masculino da caça (Caixeta de Queiroz, c.p.). Cuidados pelas mulheres, mas propriedades dos homens. Esta posição dual ocupada pelos cães nas aldeias é resumida por Vander Velden ao falar sobre os Karitiana. Ali, os cães ocupam um espaço intermediário entre homens e mulheres: de um lado, são cuidados pelas mulheres desde filhotes, e de outro, demonstram seu valor afetivo em companhia dos homens -- já que entre neste grupo o valor do cão reside na sua habilidade para a caça. Nas palavras do autor, "a habilidade para acompanhar os homens na caça e mesmo lançar-se sobre elas [as presas] e matá-las determina o valor assinalado a cada cachorro" (Vander Velden, 2009: 8). Tal distinção de gênero também está presente entre os Guajá, segundo Cormier (2003). Para a autora, a interação entre cães e humanos expressa uma divisão de gênero na qual os primeiros se relacionam com os homens enquanto auxiliares na caça e com as mulheres enquanto filhos37. 37 De acordo com os meus dados, não é comum o uso de termos de parentesco (como “filhos”) para designar os cães. Isso se explica, talvez, pelo fato do animal ser concebido como um animal associal e incestuoso. Outra exceção, porém, pode ser vista no caso dos Karitiana, onde não só os cães, mas todos animais domésticos se vinculam aos humanos em termos de parentesco: “o animal doméstico é como filho (‘it) (...)”, e a criação de animais domésticos gera preocupações “de forma idêntica ao que se passa com os filhos humanos” (Vander Velden, 2010: 164). 65 2.4: Cuidados e controles: os cães e seus mestres Refletir sobre quem exerce o cuidado e se responsabiliza pelo cão, ou mesmo refletir sobre quem tem a posse do animal, e as implicações dessas relações, são algumas das questões que nos interessam neste capítulo. Como indica Erikson, a figura do dono e as noções de maestria devem ser mobilizadas para caracterizar as relações entre humanos e animais na Amazônia (2012: 16). O caso dos cães, em especial, mostra-se intrigante pelo fato de eles serem, em muitos grupos, associados lexicalmente aos jaguares38. E como mostra Fausto, a 'jaguaricidade' é um dos traços associados à figura do mestre na região amazônica (2008: 335). Como vimos no início deste capítulo, a concepção dos índios a respeito dos cães alude ao seu estatuto sexual, alimentar e socialmente incontrolável: o cão pratica o incesto, come o que vir pela frente (inclusive, dejetos) e, em termos de sociabilidade, têm atitudes e hábitos “opostos aos necessários para o bem viver em comunidade” (Vander Velden, 2010: 289). Entre os Awá-Guajá, como diz Garcia, os latidos noturnos dos cães, as brigas incessantes entre eles próprios e seus ataques às pessoas são atitudes condenáveis, sendo reprimidas por todos da aldeia. Por isso, os cães são tratados de forma repressiva, e seus latidos ou seus ataques raivosos são sempre interrompidos por meio de atos violentos (2012: 287). Não obstante, esta atitude não é reprovada no contexto da caça: Não há problema quanto aos cachorros latirem desmedidamente e serem ferozes na mata (isso é desejável), pois é para isso que estão lá. Mesmo em alguns casos amarrando-os em coleiras para controlá-los, no geral, a violência e a balburdia canina são atitudes esperadas na floresta (id: 286). Para além da diferença no modo de tratamento dos cães, algo que já vimos acima, este relato de Garcia a respeito dos Awá-Guajá ressalta também a diferença no tipo de controle que os donos exercem sobre seus animais. Esta diferença ocorre em relação ao contexto (neste caso específico, o contexto doméstico versus o contexto da caça), mas também pode-se notar diferenças em relação à idade dos cães. Em relação a este último fator, diz Vander Velden: 38 A associação entre cães e onças será objeto de análise no capítulo seguinte. 66 Às crianças, pois, o cuidado, a proteção e o controle – o mesmo aos filhotes de animais de criação. Aos adultos cabe cuidarem de si mesmos, protegendo-se de um mundo agressivo, beligerante. Este percurso da infância à vida adulta parece ser reproduzido pelos animais de criação introduzidos, notadamente os cães (2010: 180). Como já notado acima, em muitos casos os cães são tratados de uma maneira especial quando filhotes. Em comparação aos cães adultos, são bem cuidados e alimentados. Além disso, os casos de maus-tratos de filhotes de cães são mais raros, com exceção daqueles promovidos pelas crianças -- como, por exemplo, entre os Hixkaryana, onde as crianças atingem os cães com lenhas em chamas. Especificamente nestas brincadeiras, não me parece haver o intuito deliberado de maltratar os cães como o há nos casos em que eles são maltratados quando tentam roubar comida dos humanos. Neste caso de roubo, há uma predisposição ao maltrato e à repreensão porque o animal está descumprindo algo que lhe é impedido: comer a comida dos humanos. Tais repreensões, assim, são geralmente proferidas por adultos aos cães adultos. O cuidado especial exercido na infância do cão tem a ver, nesse sentido, com a necessidade do controle de um dono sobre a identidade do animal. Vê-se uma atenção a este período de vida dos cães da mesma forma como, na Amazônia em geral, há uma preocupação com a identidade dos humanos recém-nascidos. Como mostra Peter Gow, quando uma criança nasce entre os Piro há uma dúvida a respeito de seu estatuto: “‘is it human (yineru)?’ (...) this question adresses the bodily form the baby: is it a human, or a fish, or a tortoise or ‘an animal nobody ha dever seen’?” (2000: 49). Segundo o autor, para se tornar um “kinsperson” o recém-nascido deve ser “fed with ‘real food’ and respond with kin terms” (id: idem). O mesmo ocorre entre outros grupos amazônicos: entre os Trio, segundo Riviére, a couvade serve justamente para individualizar a criança, já que, quando ela nasce, está imersa em um universo indiferenciado de subjetividades (1974: 433). E como mostra Vilaça sobre os Wari’, este estado indiferenciado do nascimento é perigoso. Na couvade, tanto a gestante quanto o seu marido devem evitar “corporeal associations with beings of other species, which constitute the condition of possibility for Amazonian shamanism” (2002: 360). 67 Os dados de Vilaça e de Riviére que tratam da couvade e do processo de fabricação corporal dão ênfase no parentesco. Em Vilaça, por exemplo, o perigo do estado de recém-nascido não é de que corpo volte ao estado de natureza, mas “rather to affirm a specific nature by fabricating a body akin to those of its parentes, its family, or other members of the local group” (Vilaça, 2002: 359). No processo relativo aos cuidados com a infância dos cães, contudo, tenho minhas dúvidas sobre a centralidade da construção do parentesco. Acredito que, no caso dos cães, o que importa é muito mais o controle (subjacente ao cuidado) como dispositivo para evitar que sua potência predatória descambe contra os humanos39. Por conta desta identidade ainda não marcada, a adoção na Amazônia, seja de humanos ou de animais, é um processo contínuo que não se completa apenas com um ato jurídico-legal, tal como ocorre no Ocidente. Ao contrário, a adoção ocorre por meio de constantes atos de alimentação, cuidado, co-residência, compartilhamento, etc (ver, e.g., Rival, 1993; McCallum, 2001; Costa, 2017). Na visão de Oliver Allard, especialmente, a alimentação é peculiar nesse processo de adoção ou filiação40: “this insistence on food shows the link with domestication: in Barasana, ‘to domesticate’ means ‘to give food to”, e nesse sentido, “a dog is “a jaguar you feed”, assim como “a wild animal is ‘an animal that is not fed’” (Allard, 2003: 45). A homologia entre a adoção e filiação de crianças e a criação dos cães é sustentada também por Vander Velden. Entre os Karitiana, os animais são “criados como gente” e precisam, assim como os humanos, ser protegidos em tenra idade para que, um dia, tornem-se responsáveis por si próprios (2010: 176). Mas, até que isso aconteça, uma série de cuidados é necessária. Parece, então, (...) que os animais de criação introduzidos experimentam, como os humanos, a progressão em seus ciclos de vida: bem-tratados e mimados quando juvenis (exatamente como as crianças), e ao 39 Não são apenas as relações com os cães que denotam como, na Amazônia, a identidade humana deve ser constantemente fabricada a partir do fundo instável e perigoso da animalidade. Os períodos do nascimento e da adolescência, por exemplo, expressam este fato. Em muitos grupos da região, como entre os Parakanã e Araweté (Fausto, 2001: 396; Viveros de Castro, 1986: 442), as crianças recémnascidas adquirem o estatuto da humanidade apenas depois do manuseio físico de seus corpos, realizado pelos seus parentes. 40 Em seu livro The owners of kinship (2017), Luiz Costa reforça os argumentos, já contidos em Fausto (2001) e Vilaça (2002), segundo os quais a adoção e filiação na Amazônia são processos de natureza oposta. Sobre o caso da couvade realizada entre os Kanamari, Costa mostra como o parentesco biológico é também adotivo, ou seja, como a filiação é um caso da adoção, e não o inverso. 68 crescerem e se tornarem adultos passam a receber tratamento condizente com sua maturidade, o que inclui autonomia e responsabilidade (Vander Velden, 2010: 178). Há, nesse sentido, uma gradação em relação à idade: como filhotes, os cães dependem dos cuidados de seu dono; e conforme ganham maturidade, adquirem autonomia e tornam-se responsáveis pelos seus atos. Mas até que ponto os cães, quando adultos, deixam de ser controlados pelos seus donos? Ou, por outro lado, até que ponto a relação de dependência entre ambos se esvai? Uma resposta a esta pergunta pode ser dada tendo em vista os processos de alimentação dos cães. 2.5 Da dependência ao controle: considerações finais Para continuarmos falando sobre o controle ao qual os cães estão submetidos, temos de voltar às práticas de alimentação do animal41, sobre as quais já discorremos no decorrer deste capítulo. Retomemos o caso etnográfico dos Kanamari, tratado por Luiz Costa: ali, todo ato de alimentar implica a produção da dependência (-naki-ayuh) naquele que está sendo alimentado. A relação de um animal de estimação e sua cuidadora, que o alimenta, é marcada então pelo controle da segunda sobre o primeiro. Nas palavras do autor, “enquanto dura a alimentação, a dependência do animal persiste” (2013: 481). Dado o que já foi apresentado acerca da alimentação dos cães na Amazônia, poderíamos situar o animal em uma relação dependência para com o seu dono? Ademais, o controle necessariamente implica dependência, e viceversa? Estas são as duas perguntas que tentarei responder até o final deste capítulo. Esta relação de dependência me parece presente justamente no período em que o cão é alimentado, isto é, no período em que o animal ainda não adquiriu maturidade. Esta etapa específica corresponde, muitas vezes, àquela na qual o animal ainda não está apto a participar da caça. Nesta fase do seu ciclo de vida, a identidade do animal ainda está em disputa (entre os humanos e espíritos, de quem são auxiliares) e sua potência predatória precisa ser controlada. Como veremos com mais detalhes no capítulo a seguir, os cães na Amazônia estão associados aos jaguares não só pelas 41 A relação entre alimentação e controle, ou entre alimentação e cuidado/proteção, aparece em vários grupos na Amazônia. Entre os Kuikuro, por exemplo, o esquema de base da filiação (e consequentemente o controle e a proteção envolvidos nesse esquema) é marcado pela oferta alimentar. Segundo Fausto, os pais entre os Kuikuro são “donos” (kukoto) porque exercem cuidado e oferecem alimentos aos seus filhos (2008). 69 características morfológicas que ambos têm em comum, mas também pela posição homóloga que ambos assumem: a de espírito auxiliar. Se por um lado o xamã domestica o jaguar como espírito auxiliar, os mestres dos animais, por sua vez, domesticam o cão como seus jaguares. Como mostra Eduardo Kohn, “what the Runa see as wild, the animal masters see as domestic (...), what the Runa see as jaguars are the hunting and guard dogs of the animal masters” (2007: 107). Nesse sentido, ser cão, ou ser jaguar, além de corresponder a uma condição morfológica corresponde também à condição canina de animal feroz domesticado e sob o controle de um dono (Fausto, 2008: 356). Ao contrário dos xerimbabos, que não possuem atributos ferozes, os cães são marcados pela sua ferocidade42. Com efeito, ainda quando filhotes eles precisam ser mantidos em uma relação de dependência para com seu dono, pois, caso contrário, esta ferocidade não será utilizada a seu favor. A dependência me parece ser não uma condição do parentesco, como se nota entre os Kanamari (Costa, 2017), mas sim uma condição para que a ferocidade possa ser dirigida. Alimentar o cão, então, é um mecanismo que gera dependência naquele que é alimentado e, além disso, permite o controle sobre o estatuto do animal que, assim como o de todos os seres amazônicos, pode vir a se tornar o estatuto de um inimigo. O que está em disputa é a orientação e a direção do seu potencial predação-proteção43. Em relação à alimentação dos cães filhotes, nota-se que estes recebem alimentos que os próprios humanos comem. Entre os Nambiquara, por exemplo, os filhotes são alimentados pelas mulheres e pelas crianças com a comida que todos os humanos comem. O mesmo ocorre entre os Waiwai, onde carregar os cães, banhá-los e dar-lhes os mesmos alimentos básicos que os humanos comem têm como resultado o crescimento do corpo do cão. Nas palavras de Howard, ao comer porções de carne e de mandioca os cães estão se alimentando de “cultural products”, feitos com “extensive labor by both men and women” (2001: 243). Assim como entre os 42 Enquanto os donos dos xerimbabos ativamente inibem o desenvolvimento das características distintivas da espécie sendo criada (dentre as quais a ferocidade), com os cachorros isso não ocorre: apesar de alimentados, os cachorros não recebem tratamentos para cancelar o desenvolvimento de seus atributos distintivos e, ao contrário, passam, a partir de uma certa idade, a ter esses atributos imbuídos como consequência das atividades de seu dono. 43 Como veremos no capítulo a seguir, os cães não são só predadores, mas são também protetores. Em muitos grupos indígenas da Amazônia, o animal exerce função de proteger a residência de ataques exteriores (físicos ou metafísicos). Entre os Kanamari, por exemplo, o latido do cão durante a madrugada é um motivo para que todos acordem e vejam o que está acontecendo (Costa, c.p.). Nesse sentido, os donos utilizam seus cães para predar animais, mas também para se defender de seus inimigos. 70 Tapirapé, como vimos, entre os Kanamari os animais de estimação também são alimentados com comidas que, previamente, são mastigadas pelas donas antes de serem entregues como alimento (Costa, 2013: 479). Segundo Costa, este tipo de alimentação não é apenas a provisão de comida, mas: (...) um processo que acarreta uma mudança na dieta do animal, já que ele deve aprender a aceitar um tipo de comida consumido pelos humanos e preparado pelas técnicas culinárias humanas. Isto muitas vezes pode incluir a carne cozinhada da própria espécie que está sendo familiarizada (Erikson 2011:22). O novo paladar adquirido pelo animal de estimação aprofunda sua identificação com o dono, sendo mais um fator a prevenir possíveis fugas (Costa, 2013: 478-9, grifos meus). Em relação aos cães, esta dependência, claro, não se manifesta apenas na alimentação. Todos os cuidados recebidos pelo animal podem ser compreendidos como atos que produzem a dependência. Quando os cães vão se tornando adultos e começam a participar da atividade da caça, contudo, deixam de depender dos seus donos. Há, nesse sentido, um ciclo de vida a ser cumprido. Quando adultos, os cães deixam de se assemelhar com os xerimbabos e passam a se assemelhar mais com os humanos, os quais também passam por este período de transição: gradativamente, deixam de ser alimentados (ou passam a ter menos situações em que precisam ser alimentados) e passam a alimentar outros. Com efeito, e como já apresentado, a relação de alimentação muda. Embora não deixem completamente de ser alimentados, os cães passam a ter que se virar para conseguir comida. Precisam encontrar os restos jogados pelas aldeias, roubar os alimentos que os humanos estão comendo, ou fazer por merecer o recebimento de alguma parte da presa que auxiliaram a caçar. Mas, nesse último caso, onde há de fato uma relação de alimentação entre dono e cão, a comida dada nunca é semelhante àquela que os humanos comem. Entre os Wayana, por exemplo, certas partes da presa que os cães ajudaram a caçar podem ser entregues a eles, mas devem ser preparadas (cozidas ou assadas) separadamente das partes que servirão de alimento aos humanos (Linke, c.p.). Entre os Koripako, de modo semelhante, os cães de caça são alimentados como compensação à sua ajuda na atividade, mas o alimento que o animal recebe não deve servir de comida também para os humanos (Xavier, c.p.). 71 Além desses casos específicos, é comum também que os cães se alimentem das sobras das comidas dos humanos, algo que já fora apresentado neste capítulo. Estas sobras são exatamente as partes que os humanos geralmente não comem: cascas de frutas, farelo de milho, espinhos de peixes, ossos, vísceras e tripas das carnes de caça. Mas esta maior responsabilidade por seus atos quando adultos, que deriva da diminuição dos cuidados, de modo algum significa que o controle dos donos sobre eles deixa de existir. Mesmo sujeitos à violência (ou a “repressões”, como dizem Vander Velden e Garcia), e mesmo tendo que conseguir comida por conta própria, os cães permanecem sob o controle daquele que lhe exerce domínio. Não obstante, se na infância o controle exercido sobre os cães é destinado a definir que identidade canina esteja próxima dos humanos, em sua vida adulta este dispositivo é destinado a potencializar sua capacidade predatória e, além disso, evitar que esta aptidão se projete contra os humanos. Como mostra Felipe Vander Velden, embora os cães sejam criados entre os Karitiana por serem "companheiros no mato", sua posição simbólica e seu tratamento cotidiano são marcados pelo desprezo e pela violência. Cães são enfeites como trabalhadores dedicados e companheiros afetuosos, mas também são pa'ira (termo que se refere aos seres de potência predatória) devido à sua agressividade quando faminto. Nesse sentido, a ambiguidade dos cães é recorrente na Amazônia porque a potência caçadora, virtude típica dos jaguares e presente também nos cachorros, é tanto admirada quanto temida (Vander Velden, 2012). O controle sobre este temor, como espero ter mostrado, está expresso na alimentação (principalmente) e nos cuidados recebidos pelos cães quando filhotes. Já o desenvolvimento deste “admirado” potencial predatório está expresso nos processos de capacitação das habilidades cinegéticas do animal. E como veremos no próximo capítulo, estes processos não deixam de ser um mecanismo de controle. 72 Capítulo 3: De nomes e corpos: personalização e capacitação dos cães na Amazônia 3.1.1 Nomes e nomeações Objeto de discussão desde os primórdios da antropologia, as modalidades de atribuição de nomes pessoais (ou onomástica) adquiriram significação e relevância variadas nas etnografias e demais trabalhos da disciplina. Em Systems of consanguinity and affinity, por exemplo, Morgan apresenta como os nomes pessoais estão conectados ao parentesco, mas mostra também como “in more than fifty nations” eles são negligenciados em favor do uso recorrente e preferencial das terminologias (Morgan, 1871: 132). Contornar o uso de nomes pessoais de cada indivíduo seria, para Morgan, um mecanismo de manutenção do parentesco (Bamberger, 1974: 363); com efeito, o sistema de nominação seria restrito e obliterado pelo sistema de parentesco. Em outros autores, contudo, a relação entre nomes pessoais e termos de parentesco foi explorada de modo diferente, tornando o estudo da onomástica não mais subsumido aos estudos do parentesco, mas sim algo que contribui para o seu desenvolvimento. Sobretudo depois das contribuições de Needham (1954), Goodenough (1965) e Lévi-Strauss (1962), o estudo dos nomes pessoais (e de suas modalidades de transmissão, seus significados etc.) teve seu escopo ampliado, passando a ser útil, nas etnografias, também ao entendimento da organização social, do ritual, entre outros. Aproveitando-se das contribuições mencionadas acima, alguns trabalhos sobre grupos das Terras Baixas da América do Sul refletiram sobre os sistemas nativos de nomeação e o associaram a outras esferas da vida social. Em relação aos grupos de língua Jê do Brasil Central, Maybury-Lewis presumia que o entendimento dos nomes e do sistema de nomeação nestas sociedades seria “the most valuable key to the elucidation of their social systems” (1984: 2). Segundo Gonçalves (1992), o tema da onomástica na região passou a se enriquecer a partir das décadas de 1970 e 1980, com trabalhos que conectavam os nomes próprios ao ritual (Ramos, 1974), à mitologia (Lopes da Silva, 1984), à organização social e ao parentesco (Bamberger, 1974; Lea, 73 1986), entre outros temas. A primeira tentativa de síntese dos sistemas de nominação na Amazônia foi proposta por Viveiros de Castro. Em Os deuses canibais, o autor propõe como síntese dos sistemas de nominação na região amazônica a distinção entre os “sistemas canibais”, característicos dos Tupi-Guarani (e também Txicão e Yanomami); e os “sistemas centrípetos ou dialéticos”, característicos dos grupos Timbira, Kayapó e Tukano. Nos “sistemas canibais”, onde a onomástica tem uma função individualizadora, a regra de nominação é exonímica, isto é, os nomes vêm de fora: dos inimigos, mortos, deuses e animais – em outras palavras, esses são sistemas nos quais se recebe os nomes dos outros. Em relação aos “sistemas centrípetos”, nos quais a onomástica exerce uma função classificatória, os nomes designam relações sociais, além de definirem “grupos corporados com uma identidade coletiva” (Viveiros de Castro, 1986: 384). O que nos cabe refletir aqui é sobre a posição ocupada pelos animais, e especialmente pelos animais domésticos (como os cães), nos sistemas de nomeação de grupos amazônicos estudados ao longo das últimas décadas. Tal como já mostrado em outras partes desta dissertação, os animais domésticos são recorrentemente citados nos textos etnográficos que tratam dos mais variados temas da etnologia americanista. Porém, poucos são os trabalhos que se atêm de forma mais minuciosa a estes seres não-humanos. Longe de ser uma exceção, o tema da onomástica nos oferece uma interessante evidência da presença e relevância dos animais nos sistemas de nomeação indígenas e da marginalidade dos animais domésticos. Antes de entrarmos no caso específico da nomeação no caso destes últimos (e dos cães, em especial), tratemos brevemente dos animais em geral. Encontrar menções aos animais e situar a sua relevância nos textos sobre onomástica revelou-se um exercício frutífero. No artigo de Alcida Ramos sobre os Sanumá (1974), um dos primeiros a dar realce à onomástica tendo como foco um grupo indígena amazônico, os animais aparecem como a fonte por meio da qual os humanos recém-nascidos adquirem seus nomes. No processo ritual que se segue ao nascimento, o pai da criança “goes on a ritual hunt, looking for the animal whose spirit will be given to the child” (id: 174) e, depois de matar o animal, amarra-o e o traz à aldeia, evitando ao máximo o contato com seu corpo. Passado o ritual, a criança então é nomeada com o nome do animal morto por seu pai. A incorporação do recémnascido ao seu grupo, como um “humano de verdade”, acontece necessariamente “through a ritualized communion with the animal world” (id: 179). O processo de 74 nominação entre os Sanumá, segundo Ramos, elucida a relação entre os reinos animal e humano: The realm of human beings, which is always carefully distinguished from the realm of the animals (...) is now put into intimate contact with the animal world through the transference of an animal spirit into the body of a child. This contact is all the more overwhelming since its medium is a supernatural element which differs radically from the ordinary incorporation of animal matter into humans through the consumption of cooked meat. (Ramos, 1974: 178-79). A importância dos animais na nominação humana é também ressaltada por outros autores. Falando sobre os Kayapó, Vanessa Lea mostra como os nomes dados aos recém-nascidos podem ter origem nos animais. De acordo com a mitologia nativa, especialmente os “beautiful names” (idzi mets ou idzi kat) surgiram quando os xamãs passaram a viver com os peixes: em suas jornadas noturnas, os xamãs perguntavam aos donos (kapreinpp) dos animais e das plantas os nomes destas espécies com o objetivo de transmiti-los aos seus parentes (1992: 135). Nesse sentido, “although shamans contribute to the existing pool of names, they are thought not to invent names but to appropriate them from animals, plants and the dead”44 (idem: id). Nomes humanos originados ou apropriados dos animais também são encontrados entre os Guayaki. Segundo Pierre Clastres (1972: 252), o nome atribuído ainda ao feto referese a uma qualidade do animal caçado pelo pai e comido pela mãe. Essa forma de nominação seria, segundo Gonçalves, de natureza metonímica e particularizante: “uma vaca em particular, não a classe das vacas; e uma qualidade desta vaca (os belos chifres), não toda a vaca” (1992: 52). Como já antecipado acima, se por um lado os animais em geral ocupam posição central na onomástica de diversos grupos amazônicos, por outro, poucos são os dados etnográficos sobre o sistema de nomeação dos animais familiares. Uma 44 O exemplo exposto aqui sobre os Kayapó parece contradizer uma oposição tradicional na etnologia amazônica, a saber, aquela entre os grupos de orientação centrípeta (característica atribuída aos grupos Jê, do qual os Kayapó fazem parte) e aqueles de orientação centrífuga, característica dos grupos tupi. No entanto, outros dados sobre a onomástica kayapó (e expostos pela própria Vanessa Lea) afirmam a orientação centrípeta do grupo. Segundo a autora, a incorporação de nomes de inimigos entre os Kayapó é residual: dentre os 1824 nomes registrados, apenas 22 (1,2%) tinham origem externa, isto é, de grupos não-kayapós (Lea, 1992: 133; sobre uma análise dessa oposição, ver Fausto, 2001: 533-37; e para uma revisão deste tema, ver Gordon, 2006, e Coelho de Souza, 2002). 75 notável exceção é o trabalho de Dienst e Fleck a respeito dos “pet vocatives”, publicado em 2009. Embora este não seja exatamente um trabalho sobre onomástica, no sentido de que os vocativos não são nomes próprios45, os autores intentam preencher parte da lacuna da etnologia amazônica acerca dos termos atribuídos pelos grupos indígenas aos animais domésticos. Recobrindo a área etnográfica do sudoeste amazônico (entre o Vale do Javari e o rio Purus), Dienst e Fleck mostram que a maioria dos grupos ali localizados não confere nomes próprios aos seus animais criados nas aldeias. Porém, geralmente são utilizados termos especiais para chamar ou fazer menção a estes animais: When calling a pet, the speakers typically repeat the vocative several times, which is reminiscent of how one calls to a house cat in several European languages (e.g., English Here, kitty, kitty, kitty!, German Miez, Miez, Miez!, French Minou, minou, minou!). Kitty, Miez(e), and minou are nouns meaning ‘cat’ or ‘kitten’, but their use in a referential function is associated with child language. Conversely, it is not possible to use the standard English, German, or French word for ‘cat’ to call to a cat. The functional difference between cat and kitty is thus very close to the distinction between referential nouns and pet vocatives in Amazonia (Dienst & Fleck, 2009: 210-11). De acordo com o estudo realizado por Dienst e Fleck, os vocativos ocorrem em pelo menos quatro famílias linguísticas amazônicas, todas localizadas na Amazônia ocidental. Apesar disso, o uso de vocativos aos animais domésticos pode ser encontrado em outras regiões etnográficas das Terras Baixas da América do Sul (2009: 236). Contudo, apesar do esforço dos autores de abrirem um campo de estudos sobre o modo pelo qual os animais domésticos são chamados na Amazônia, o caso dos cães não me parece adequado para ser pensado no modelo dos vocativos. Em outras palavras, os termos utilizados para se chamar os cães, dos qual pretendo tratar daqui em diante, não se assemelham à lógica dos vocativos característica da Amazônia ocidental. Como buscarei mostrar, os modos pelos quais os cães são 45 De fato, a questão dos pet vocatives tem menos a ver com a onomástica, e mais a ver com a pragmática ou a semântica. Em outras palavras, os vocativos são meios para se estabelecer comunicação com os pets mais do que designações ou atribuições de nomes a eles (Costa, c.p.). 76 chamados se alicerçam sobre fatores que estão além de mera inflexão na “referencial noun” da espécie animal (idem: 210). Ampliando a área geográfica abrangida pelo estudo de Dienst e Fleck para toda as TBAS, e fazendo uso de dados secundários, mostrarei a seguir como os fatores determinantes da nomeação dos cães são outros, a saber: sua origem externa e suas características físicas. 3.1.2 Os cães e seus nomes próprios Como mostrado no primeiro capítulo dessa dissertação, a introdução dos cães na Amazônia é, em partes, efeito da expansão não-indígena e dos intercâmbios promovidos na região. Alguns dos termos pelos quais o animal é referido manifestam tal história. Como afirma Vander Velden para o caso Karitiana, o cão é um intermediário ou um elo com o mundo dos brancos, e seu nome, nesse sentido, “está vinculado ao universo das atividades daqueles que o trouxeram” (Vander Velden 2012: 64). O vínculo entre os nomes atribuídos aos cães e os brancos se manifesta em outros grupos. Entre os Bororo, por exemplo, os cães recebem nomes que são comparados a apelidos de homens brancos, como preguiçoso46 (Crocker 1985: 31). Nas palavras de Crocker, os nomes dos cães entre os Bororo são comparados “with human nicknames, and even are marginal to these in that most are derived from Braziliam language and usages” (idem: 32). Já na região das Guianas, os cães entre os Wayana são chamados em português por termos considerados por eles excêntricos, como maçã e bolo (Linke, c.p.); enquanto que entre os Hixkaryana, denotando a mesma excentricidade, alguns cães recebem nomes de personagens das telenovelas assistidas nas aldeias (Luisa Lucas, c.p.). Não obstante, a atribuição dos nomes ou o uso de termos para se chamar os cães na Amazônia revelam aspectos que estão para além da associação do animal com os brancos. Em sua tese, Vander Velden observa que os dados provenientes dos grupos amazônicos atestam, para além da associação com os brancos, outras regras gerais a respeito dos nomes dos cães. Além dos nomes estrangeiros, é constante também a atribuição de nomes “jocosos, depreciativos ou extraídos do universo dos 46 A atribuição do apelido pejorativo “preguiçoso” desperta curiosidade e certa ironia, por ser um apelido que os brancos (especialmente os conquistadores, missionários e agentes do SPI) atribuíam aos índios. Nos diários de Pedro II, por exemplo, a preguiça é uma característica marcante atribuída aos índios: “quando Pedro II estabelece (...) uma distinção entre índios e caboclos, insiste na ideia de ‘preguiça’ dos índios” (Da Silva, 2016: 258). Em outras palavras, trata-se dos índios chamando o cão pelo modo como eles eram chamados (ou ao menos concebidos) pelos brancos. 77 humanos, mas que descrevem características do animal, físicas e comportamentais” (Vander Velden, 2010: 216). O texto de Diego Villar, “Indios, blancos y perros” (2005), é uma das poucas análises antropológicas a respeito da onomástica dos cães nas TBAS. Tratando de um conjunto de povos localizados no Chaco boliviano, o autor argumenta que o sistema de nomeação aplicado aos cães difere tanto daquele aplicado aos humanos, quanto daquele aplicado aos animais em geral. Para os cães, segundo Villar, nenhum dos dois sistemas se aplica porque os nomes atribuídos aos cães são sempre ambíguos. Ao invés de revelarem uma orientação antropomórfica, como no caso dos animais em geral, ou zoomórfica, como no caso dos humanos, a onomástica dos cães revela uma associação dual (e, portanto, ambígua) do animal: "la etimologia presenta al perro como mascota del hombre, paradigma del animal del hogar, pero también como mascota del jaguar, signo por antinomasia de la inhumanidad deliberada, lo asocial y lo selvaje" (2005: 499). Embora esta proposta já tenha sido empreendida por Vander Velden (2010), o que nos cabe ao longo deste tópico é detalhar, a partir de dados etnográficos, os modos constantes de nomeação dos cães entre os grupos indígenas amazônicos. Como já mostrado pelo autor, uma das particularidades da região é a nomeação a partir das características corporais do animal, e os dados que levantei confirmam esta regra. No alto Rio Negro, entre os Koripako (Xavier, c.p.), e no Rio Solimões, entre os Tikuna (Goulard, c.p.), os cães são chamados por termos como negro, moreno ou feo, os quais denotam as características físicas do animal (além da associação aos brancos, por se tratar de termos em português e espanhol). Entre os Yanomami, localizados no norte amazônico47, o cão também é chamado de acordo com suas características físicas. Segundo Arlindo Goes Yanomami (c.p.): Se o cão estiver com orelha sem ter quebra na ponta se daria o nome de yimikaki hayawë que [quer] dizer ‘orelha de veado’. Se o cão estiver quebra com a ponta da orelha se daria o nome de wërërë que [quer] dizer orelha quebrada. Xetiti que dizer pintas paralelas [e] assim vai... 47 Como a informação já consta na tabela, e a fim de evitar o cansaço na leitura, a partir daqui deixarei de fazer menção à região onde o grupo em referência está localizado. 78 Entre os Suruwahá, segundo Huber Azevedo, os nomes próprios que são exclusivos e não-repetíveis são prerrogativas reservadas aos humanos, aos espíritos interlocutores dos humanos (kurimia) e aos cães de caça (marihi)48. Em relação a estes últimos, seus nomes são definidos a partir dos próprios traços corporais. Malhado (Kabany), Preto (Asari), Cheio de Feridas (Mirukwa) e Anel no Pescoço (Asami Kawana) são alguns dos exemplos de nomes descritivos dados aos cães de caça entre os Suruwahá (2012: 288). Assim como neste caso da Amazônia ocidental, entre os Wayana os cães são os únicos animais domésticos a receberem nomes próprios. Há, porém, uma variação entre nomes atribuídos em português (como Marreteiro) e nomes atribuídos na língua nativa (como Miryry): Há o Marreteiro, chamado assim porque é preto como os antigos comerciantes que viajavam pelo rio. O Kupixuru, que tem corpo e pernas bastante “compridos”. A Piano, que persegue e inferniza as aves no terreiro, como um “gavião”. O Miryry, cujos dentes proeminentes lhe conferem um “sorriso” constante (Coutinho Barbosa, 2007: 112). Podemos ver, assim, que em vários grupos amazônicos os cães são chamados por termos descritivos, isto é: além de remeterem aos aspectos físicos do animal49, os nomes dos cães fazem referência também a suas características comportamentais. No caso dos Karitiana, por exemplo, estas características são todas relacionados com a caça: As escolhas também podem remeter ao uso de caracteres comportamentais do animal na atribuição de nomes, todos eles relacionados com a caça: Epitácio, que deu o nome a uma de suas cadelas, diz que cães com muita barba (com pelos abundantes no 48 Segundo Huber Azevedo, os animais silvestres capturados e criados no ambiente doméstico não são nominados, mas chamados por vocativos próprios, dos quais existe um para cada espécie. Estes vocativos são invariavelmente aplicados a todos os indivíduos concretos representantes da mesma espécie (2012: 288). 49 A respeito dos Inuit, no ártico canadense, Laugrand e Oosten (2002: 91-93) apresentam um sistema onomástico em que cães são nomeados a partir de referências a sua cor -- algo que ocorre entre os Karitiana, como mostra Vander Velden (em cuja tese encontrei esta informação, 2010: 217), mas também em outros grupos amazônicos, como tenho mostrado neste capítulo. 79 focinho) são bons caçadores (...) Destarte, cães chamados Pantera, Tigre (modo comum de se referir a onças no interior do Brasil), Lobo ou Torowoto (“onça preta”) são algo redundantes, pois apenas confirmam a semelhança entre cachorros e outros caçadores da floresta, além de apontarem para o talento desses animais (Vander Velden, 2011: 211). A associação do nome dos cães à sua atuação na caça não ocorre apenas entre os Karitiana. Em sua viagem de Roraima ao Orinoco, Koch-Grümberg registra o caso de um cão eficiente na caça de porcos que é chamado, justamente, de “Porco” (2006: 292, apud Vander Velden, 2010: 216). 3.1.3 – Os termos para a(s) espécie(s): cães e onças Vimos como, no caso dos cães, não há atribuição de pet vocative, mas sim um nome que pode ser usado como vocativo (e que portanto é específico a cada indivíduo da espécie) e que registra a origem externa (da espécie) e as características físicas (do indivíduo). Mas, além destes aspectos, muitas vezes o nome atribuído à espécie de cães faz referência às onças. Entre os Karitiana, por exemplo, os cães são literalmente "onças mansas" ou "onças de criação", ou obaky by'edna (Vander Velden 2009: 9). Em Do mel às cinzas, Lévi-Strauss chamou atenção para a classificação semelhante utilizada por grupos indígenas para se referirem aos cães e jaguares: falando sobre a língua tupi-guarani, diz o autor que “[a] partir do radical /iawa/ o tupi forma, por sufixação, os substantivos: /iawara/‘cachorro’, /iawaraté/ ‘jaguar’, /iawacaca/ ‘ariranha’, /iawaru/ ‘lobo’, /iawapopé/ ‘raposa’” (2004: 83). Nas línguas Parakanã e Ka’apor, que também fazem parte da família linguística tupi-guarani, os cães são chamados pelo mesmo termo utilizado para designar o felino: jawara para o caso Parakanã e yawar para o caso Ka’apor. Entre os Awá-Guajá, cuja língua pertence à mesma família, "utiliza-se a tradução 'cachorro' para fazer referência aos jawara (onças)" e se chama, muitas vezes, os cachorros de onça (Garcia 2012: 296). Já em grupos de língua Jê, como Xikrin-Mebengokre e Canela Apanjekra (Timbira), o radical Rop- é utilizado para designar o cachorro e também o jaguar. Segundo Felipe Vander Velden, duas são as razões que explicam a associação entre cães e onças. Em primeiro lugar, os cães associam-se às onças porque eles detêm o potencial de ferocidade prototípico do felino. Para os Karitiana, ser 80 potencialmente perigoso é um dos fatores que causam a associação do cão ao maior carnívoro das Américas. Em segundo lugar, Vander Velden postula que cães e onças estão inseridos em um contexto ecológico comum: a caça, a ferocidade, a agressividade e a competição ecológica são características compartilhadas por ambos os animais. Estas duas razões explicariam o motivo pelo qual o termo indígena para onça foi comumente utilizado para designar os cães introduzidos pelos europeus (2012: 296-303). Assim como Vander Velden, Philippe Descola também observou que a classificação semelhante para cães (e também outras espécies de mamíferos carnívoros) e onças provém da concepção nativa segundo a qual estes seres compartilham "natural ferocidade e gosto por carne crua" (Descola, 1994: 230). Uma explicação alternativa à defendida por Vander Velden e Descola é fornecida por Eduardo Kohn, em seu livro How Forests Think (2013). Na concepção do autor, cães e onças estão imersos em um mundo representacional no qual não só os cães estão associados às onças, mas também estas últimas aos caninos. Embora em relação aos humanos a posição da onça seja a de predador, em relação aos seres espirituais elas são cães subservientes, exercendo a função de auxiliar dos mestres dos animais na floresta. Nesse sentido, muitas vezes “what we think of as a jaguar is actually [the spirit animal master’s] dog” (2007: 11). Nesse sentido, por mais que as explicações de Vander Velden e Descola não sejam incorretas, a associação entre cão e jaguar na Amazônia não decorre apenas das características morfológicas compartilhadas por ambos. Para além dos "hábitos e técnicas corporais que ambos têm em comum” (Vander Velden 2012: 296-303), um dos motivos da associação lexical entre cães e onças é o fato do jaguar também estar na condição de familiarizado por xamãs e guerreiros, assim como o cão o é pelos humanos. Como mostra Fausto (2008: 335), a associação entre cães e onças decorre da condição canina de animal feroz domesticado e sob o controle de um dono humano, ou, de maneira inversa, decorre da condição felina de animal feroz domesticado e sob controle dos mestres dos animais50. O atributo da ‘jaguaricidade’ compartilhada pelos seres, assim, mostra-se mais como um traço relacional e menos 50 Embora Fausto apresente a sua interpretação da associação entre cães e jaguar em seu artigo de 2008, o argumento provém de sua etnografia sobre os Parakanã, publicada em 2001. De acordo com os dados de Viveiros de Castro sobre os Araweté (1992: 248), Fausto mostra que o espírito de um jaguar morto, tratado da mesma maneira que o do inimigo humano, torna-se um “bicho de estimação” no processo de “amansamento” de uma vítima. Este bicho seria, para o caçador, algo como um cão de caça que dorme sob a rede de seu dono (Fausto, 2001: 417). Voltaremos a tratar disso nas considerações finais deste capítulo, e também na conclusão da dissertação. 81 como uma característica morfológica. Antes de voltarmos a esta questão, porém, falemos sobre a caça na Amazônia e a participação dos cães dela. 3.3 A caça na Amazônia: modo de subsistência e o modelo da predação O tema da caça na etnologia das Terras Baixas da América do Sul esteve por muito tempo centrado em abordagens adaptacionistas, as quais davam ênfase em modelos de custo/benefício, nas formas de obtenção de proteínas e nos meios de adaptação ao meio ambiente (Gross, 1975; Ross, 1978; ver Garcia, 2017: 4-5)51. Como aponta Viveiros de Castro em sua síntese dos modelos teóricos da etnologia amazônica (2002: 319), estes trabalhos -- alinhados à escola da “Ecologia Cultural” -pressupunham o paradigma da escassez de proteínas como fator determinante da baixa ocupação humana na região amazônica. Com efeito, ao abordarem a relação entre sujeito e objeto na caça (i.e. caçador/presa) privilegiavam o último polo, atendose, assim, mais às condicionantes materiais da floresta amazônica e menos ao aspecto simbólico/ritual (bem como as consequências estruturais) da atividade cinegética. Não obstante, estas abordagens foram posteriormente criticadas por reduzirem a qualidade técnica (como a complexidade dos instrumentos venatórios) e fenomenológica (como o engajamento entre humanos e animais) da caça a problemas de ordem ecológica, isto é, a problemas de adaptação e de subsistência. De fato, os trabalhos que se dedicaram a análises menos adaptacionistas da prática da caça passaram a dar atenção não só à relação entre caça e ecologia, mas também àquela entre caça e relação social. Já no final da década de 1990, Hugh-Jones afirmava que as discussões da etnologia sobre a atitude dos índios amazônicos em relação à caça giravam em torno da ecologia e da sociologia, a primeira como “glose symbolique de la relation au monde naturel” e a segunda como “l'homologie structurale des relations à autrui” (Hugh-Jones, 1996: 6). Esta síntese traçada por Hugh-Jones, contudo, não explicita todo o longo esforço para que o tema da caça deixasse de ser objeto de estudo predominantemente da ecologia e/ou da biologia. Promovido sobretudo por etnólogos estruturalistas, esse esforço se tornou recorrente a partir da publicação de La nature domestique (1986), 51 Há duas teorias adaptacionistas, basicamente a do “limiting factor theory”, de Gross, e a da “optimal foraging theory”, de Beckerman, Hames e Vickers. Segundo William Balée, a teoria de Gross “posits demographic, sociopolitical, and ritual adjustments to environmental soils and/or protein”; e a teoria do optimal foraging theory “presupposes a human e ort to maintain work e ciency (e ort/ yield), regardless of local, environmental depletions” (2013: 33). 82 de Descola, onde o pensamento achuar “e o regime de alteridade operante ali constituem relações contínuas com a natureza, relações de caráter social em que domínios do cosmos são pensados em relações homônimas ao universo humano” (Bechelany, 2013: 313). A partir de então, novos trabalhos foram surgindo e o tema da caça tornou-se mais amplo, centrando-se menos na relação entre sujeito e objeto da atividade cinegética e mais nas relações de predação, as quais, sobretudo com os trabalhos de Viveiros de Castro, passaram a ser concebidas como um modelo prototípico da filosofia indígena amazônica52. A atividade da caça, assim como o xamanismo e o canibalismo, além de mera atividade de subsistência se tornou um modelo da operação de incorporação da alteridade. De acordo com o modelo da “economia simbólica da predação”, a caça seria um processo de “troca simbólica” que, por atravessar fronteiras sociopolíticas, cosmológicas e ontológicas, “desempenharia um papel constitutivo na definição de identidades coletivas” (Viveiros de Castro, 2002: 336). Os novos trabalhos alinhados a este modelo passaram então a refletir sobre as tensões entre interior/exterior (ou identidade/diferença) com ênfase no tema do parentesco, mais que na ecologia. O enfoque na adaptação nativa à escassez de recursos naturais (como os solos férteis e a proteína animal) foi, enfim, obscurecido pelos trabalhos que atribuíam às relações de alteridade (ou, nos termos de parentesco, às relações de afinidade potencial53) como “base dos regimes sociopolíticos amazônicos” (Id: idem). Apesar de tal mudança de foco, passando-se da atividade cinegética estrito senso para a predação mais ampla, a visão produtiva e econômica da caça (essencialmente, a ideia de escassez) não desapareceu completamente do vocabulário utilizado pelos etnólogos amazonistas. Segundo Viveiros de Castro, a etnologia amazônica (...) passou a sublinhar as determinações estruturais de regimes socioeconômicos fundados na reciprocidade e na troca de dons, e a 52 Alguns trabalhos, contudo, mostram como a oposição entre sujeito e objeto permanece presente nos trabalhos de Viveiros de Castro (ver Course, 2010). 53 A afinidade potencial é a "primeira determinação sociológica da alteridade" (Viveiros de Castro, 2002: 161), e os afins potenciais são coletivos com quem se travam relações de troca simbólica. Isso significa que o "uso positivo da potencialidade, seu aproveitamento ritual, marca a afinidade com o selo simbólico do canibalismo" (idem: 163). Esse argumento, que esboça uma relação intrínseca entre as modalidades da afinidade e do canibalismo, culmina nas teses segundo as quais: 1) o interior do socius é englobado hierarquicamente pelo exterior; 2) de que troca e canibalismo incidem sobre o termo não-marcado da estrutura global amazônica, isto é, a diferença, a Relação e a predação. 83 destacar “a natureza histórica, socialmente constituída, da interação com o meio físico (embora (...) algumas formas de escassez nãoambiental tenham sido sugeridas para explicar as morfologias sociais amazônicas) (Viveiros de Castro, 2002: 327). Mas, como aponta a própria citação, diferentemente dos postulados materialistas a respeito da escassez de recursos de subsistência (e sobre os modos de otimização do balanço custo/benefício), os trabalhos que não se distanciaram completamente da ideia de escassez lograram ater-se a relações de produção (mesmo, em alguns casos, utilizando a linguagem da economia) sem associá-las a determinismos ecológicos e ambientais (ver, e.g., os trabalhos de Riviére54). Pelo contrário, o que se torna relevante nestes estudos são os modos de incorporação da alteridade ao socius ou os modos de captura da diferença para a produção do grupo local. O recurso escasso não é mais a proteína animal, e sim a identidade e o parentesco, haja vista a sua necessidade de produção a partir da diferença, isto é, a partir deste coeficiente sine qua non das relações; e a resposta aos fatores limitantes não se dá mais por meio de adaptações (como a da dieta; ver Ross, 1978), mas sim pela abertura ao Outro. Alguns exemplos etnográficos são ilustrativos para se pensar o estatuto socialmente produtivo da caça. Entre os Waiwai, grupo Caribe do norte amazônico, durante os preparativos do ritual shodewiko, os caçadores se transformam em outros seres ao se dirigirem à floresta para reunir a carne necessária à festividade. Tal capacidade de assumir outras identidades, segundo Caixeta de Queiroz, é necessária “à manutenção da estrutura tradicional do ritual” (2009: s.p). Tanto a capturada 55 carne na mata quanto os próprios caçadores que a capturaram (e que se transformaram) cumprem o papel de introduzir a diferença. Nesse sentido, tem-se a atividade da caça e a diferença como os insumos que respondem ao perigo do fechamento do socius e da escassez de alteridade. No caso das Guianas, 54 Segundo Viveiros de Castro, esses trabalhos estariam incluídos no estilo analítico da “economia política do controle”. Nos trabalhos de Riviére (1984), por exemplo, a escassez de trabalho humano na Amazônia gera uma economia política de pessoas, fundada na distribuição e controle das mulheres. Sobre uma análise mais precisa a respeito deste e dos demais estilos analíticos da etnologia amazônica, ver Viveiros de Castro (2002: 319-44). 55 Embora o contexto ritual tratado por Caixeta seja bastante específico, a ideia de “carne capturada” obscurece a necessidade da transformação/neutralização da carne em alimento seguro, como mostrou Fausto (2002; 2007). 84 especificamente, este perigo é reforçado pelo ideal de endogamia e autossuficiência predominante nos grupos da região (Bechelany, 2013: 323). Entre os Parakanã, por sua vez, a predação “é um momento de um processo produtivo que visa controlar sujeitos-outros para produzir novos sujeitos em casa” (Fausto, 2001: 539). Associada às modalidades do parentesco (na conversão dos afins a consanguíneos), da guerra (na conversão dos inimigos a espíritos das vítimas) e do xamanismo (na conversão das presas a espíritos auxiliares), a predação entre os Parakanã não se restringe à caça porque “a predação cinegética entre humanos e nãohumanos tem como contrapartida a relação de familiarização entre xamãs e espíritos dos animais” (id: 540). A predação em geral, mas também a sua modalidade genérica da caça, são descritas por Fausto como processos produtivos “não de bens materiais, mas de pessoas e capacidades que, subjetivas, são simultaneamente objetivas” (id: 419). Por ser um contexto de aproximação entre humanos e não humanos, e por propiciar potenciais apropriações de subjetividades, a caça permaneceu sendo considerada pela etnologia amazônica como tema importante nas etnografias. Mesmo assim, seu conteúdo propriamente venatório acabou sendo obscurecido pela concepção da predação como um modo de interlocução transespecífico56. Embora a caça forneça a terminologia dos modelos predominantes nos esquemas relacionais amazônicos (como familiarização, xerimbabo, predação), o domínio próprio da atividade cinegética recebeu menos atenção que outros, como a guerra e o xamanismo57. No modelo do perspectivismo, por exemplo, a caça é o momento no qual presa e predador trocam de perspectivas, apropriando-se de identidades outras. Nesse sentido, como mostra Viveiros de Castro, são destacadas mais as “ressonâncias simbólicas” da caça que a atividade cinegética em si: horticultores aplicados como os Tukano ou os Juruna (...) não diferem muito dos grandes caçadores do Canadá e do Alasca quanto ao peso 56 Como mostram Costa e Fausto, o esquema da predação que está sublinhado no modelo do animismo “is thus dissociated from its assumed constitution in the practical activity of hunting, being promoted to the status of an all-encompassing cosmological operator” (2010: 97). 57 Recentemente, porém, alguns estudos têm se dedicado a pensar a atividade cinegética sem subsumila a outros domínios. Ver, por exemplo, Garcia (2010) e Bechelany (2017). Além disso, como já apontado na introdução dessa dissertação, há notável discrepância entre o número de trabalhos dedicados à criação e familiarização de animais, e aqueles sobre familiarização e criação de cativos e espíritos. Sobre isto, ver o capítulo 1 do livro de Costa (2017). 85 cosmológico conferido à predação animal (venatória ou haliêutica), à subjetivação espiritual dos animais, e à teoria de que o universo é povoado de intencionalidades extra-humanas dotadas de perspectivas próprias (2002: 357, grifos meus). Definida como a habilidade manifesta por certos indivíduos de cruzar deliberadamente barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividades outras, a ideologia do xamanismo na Amazônia, nas palavras de Viveiros de Castro, é também a ideologia dos caçadores (2002: 357)58. Se no xamanismo o diálogo transespecífico entre agências humanas e não-humanas asseguram a administração diplomática das “relações entre as subjetividades aloespecíficas e os humanos”, na atividade cinegética a interlocução entre os donos, mestres, senhores e seus animais determina a possibilidade da caça -- por meio da liberação dos animais caçados mediante estratégias adotadas pelos humanos, como a negociação, o dom e a aliança (Erikson, 1987). Refletir sobre a presença e atuação de um animal doméstico na atividade cinegética praticada na Amazônia nos leva necessariamente a uma provocação teórica, pelo simples fato de que esta categoria de animais foi tratada como “contrapeso semântico da caça” (Erikson, 2011: 20). Embora muitos tenham sidos os dados apresentados por etnógrafos da região a respeito dos cães enquanto auxiliares na prática da caça, poucos foram os empreendimentos teóricos que se preocuparam a discutir onde se situam estes animais no modelo da predação amazônica. Do ponto de vista do modelo adaptacionista, seriam os cães constantemente levados a participar das expedições de caça na Amazônia por conta da sua alta eficiência enquanto auxiliares dos caçadores? Ou, do ponto de vista do modelo da predação, seriam os cães (enquanto animais domesticados sob controle de um dono humano) algo como interlocutores entre as subjetividades humanas e não humanas presentes no diálogo (ou negociação) transespecífica da caça? Ao invés de seguir um desses dois pontos de 58 Em debate direto com o artigo “Feasting on people”, de Fausto (2007), Eduardo Kohn argumenta que a abordagem da etnologia amazônica acerca da “ideologia do xamanismo” se desprendeu de uma análise sobre a interação entre humanos e os animais, mesmo no contexto da caça. Nesse sentido, mesmo que predação e xamanismo estejam associados, Kohn propõe que a etnologia se debruce sobre estes temas de uma perspectiva menos antropocêntrica. Nas palavras do autor, “these Amazonian understandings of personhood are in important ways the product of intimate day-to-day interactions with nonhuman beings” (2007: 516). 86 vista, porém, tentarei mostrar no decorrer deste capítulo como os cães atuam, ao mesmo tempo, como eficientes auxiliares na caça e importantes interlocutores na predação. Para tanto, apresentarei e discutirei alguns dados levantados ao longo da pesquisa arquivística realizada por mim nos últimos anos. 3.4 A caça com cães nas Terras Baixas da América do Sul Em suas Impressões da Comissão Rondon, publicado em livro em 1942, Amílcar de Magalhães assevera que nunca havia visto o “espetáculo” da caça com o auxílio de cães, “coisa original” que o levou a “dar grande valor aos cães, por ver como são inteligentes e ao mesmo tempo diligentes”. Nas palavras do autor, era lindo: uma fileira de cachorros chefiada por um deles, em disparada pelos campos, as corixas, os banhados e todos os obstáculos dum terreno quase intransitável; de quando em vez esse extraordinário escoteiro a que os caçadores chamam de mestre-onceiro, cessava de correr para cheirar novamente os rastos que eram em muitos lugares invisíveis; e o cachorro ora voltava para se orientar melhor, ora partia como uma seta, aos pulos, latindo e estimulando assim o séquito dos outros que de perto o acompanhavam. Era esta a primeira fase da caçada; então diziam os camaradas descansadamente: "Deu no rasto o Teimoso". A ordem era "a galope"; folgamos as rédeas das alimárias e assim andamos não sei quanto tempo. (Amílcar de Magalhães, 1942: 79). A presença de cães na atividade cinegética59 entre os índios americanos, além de recorrente, é um fenômeno cuja origem pode ser confundida com a própria introdução do animal nas aldeias. Antes mesmo de adotarem, criarem e/ou cuidarem dos cães, muitos índios já conheciam as capacidades de caça do animal. Como afirmam John Varner e Jeannette Varner no livro Dogs of Conquest, “os povos da Amazônia que ainda não criavam e cuidavam dos cães estavam ansiosos para obtê- 59 O próprio termo cinegética, comumente empregado por etnólogos para se referirem à prática da caça, etmologicamente significa “arte de caçar com o auxílio de cães” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2008-2013). 87 los, uma vez que eles entenderam as habilidades de caça de tais importações europeias” (1983: 168). Embora seja comum nas etnografias de grupos amazônicos menções à utilização de cães na atividade cinegética, poucos são os estudos que apresentam dados concretos sobre a eficácia do uso do animal em comparação, por exemplo, com o uso de armadilhas ou instrumentos (tais como arco e flecha ou armas de fogo)60. O único trabalho que apresenta alguns dados sobre isso é o de Jeremy Koster. Ao falar dos Matsés do Peru, o autor indica que o retorno da caça realizada com auxílio de cães é maior do que aquela realizada apenas com armas de fogo e arco e flechas61 (2009: 585). Nas Guianas, onde cães de caça são valiosos objetos de troca, aqueles animais reconhecidamente eficazes na atividade cinegética podem ter mais valor que armas de fogo. No caso descrito por Coutinho Barbosa, por exemplo: Creonte, chefe da aldeia Jaherai, repassara a todas as aldeias no rio Paru de Leste, pelo sistema de rádio, uma mensagem informando que Tombai, um jovem meikoro do Suriname, provavelmente Boni, queria cães de caça “bons de caititu”. Em troca, ele oferecia espingardas de fabricação russa e outros artigos industrializados. (2007: 81). A escolha pela caça com cães -- ao invés do uso exclusivo de armas de fogo -também é mais benéfica de um ponto de vista econômico, uma vez que ela não requer compra de munição. Este fator é mencionado pelos Pitaguary, para os quais, segundo Kagan62, a caça sem cães seria praticamente impossível (2015: 187). Além da comparação com as armas de fogo, a autora reflete sobre a eficiência da caça realizada com cães frente à realizada com armadilhas. Entre este grupo, localizado no Ceará, as armadilhas são cada vez menos usadas principalmente pelo fato da caça com cães ser mais eficaz. Tal eficácia, contudo, não tem a ver com a maior 60 Por outro lado, em relação ao hemisfério leste há uma vasta literatura que trata da importância de cães caçadores nos modos de subsistência dos grupos nativos localizados nesta região. Para uma listagem desses trabalhos, ver Koster (2009: 575). 61 Entre os Guajá do Maranhão, de modo semelhante, Koster mostra (de acordo com os dados de Forline, 1997: 241-3) que a caça com cães e armas de fogo proporciona retornos maiores do que aquela promovida apenas com armas de fogo e arco e flechas (2009: 585). 62 A tese de Kagan é uma das contribuições mais importantes ao tema da relação humano-cão nas Terras Baixas da América do Sul. Porém, minha falta de domínio da língua francesa impede com que eu me atenha a seu trabalho de forma mais precisa. 88 quantidade de presas que o uso de cães proporciona, mas sim o fato de permitir uma maior seletividade das presas caçadas, já que os caçadores estão presentes na atividade (ao contrário da caça com armadilhas). Quando as armadilhas são montadas numa manhã, os caçadores voltam para encontrar o resultado apenas no dia seguinte e isso os impede de selecionar “son âge, son sexe et la période de reproduction de l’animal” abatido” (Kagan, 2015: 187). A falta de dados sistematizados a respeito da atuação dos cães nas atividades de caça na Amazônia também acarreta uma falta de conhecimento detalhado sobre quais são as presas regularmente caçadas com a ajuda do animal. Embora Koster tenha apresentado alguns animais comumente predados sob auxílio de cães, como cotias, pacas, pecaris e antas (2009: 582-4), as etnografias da região e mesmo os dados dos cronistas dos primeiros séculos da colonização apresentam um leque maior de animais que podem ser incluídos nessa categoria. Entre os grupos localizados na região etnográfica das Guianas, os cães participam da maior parte das atividades de caça. As presas caçadas são pacas, caititus, queixadas, antas, e preferencialmente cotias. Como caso possivelmente isolado, também, há a atuação de cães na caça de porcos do mato (Roth, 1929: 322). Em relação aos Trumai, localizados no Alto Xingu, região etnográfica onde a pesca predomina sobre a caça, os cães são indispensáveis à caça de paca63: à luz do dia, os caçadores seguem no rio a jusante enquanto seus cães auxiliares os acompanham pela mata, assustando as pacas por meio de latidos. Então assustadas, as pacas saem da toca e fogem para a água, onde se tornam facilmente alvejadas pelos caçadores munidos de suas espingardas (Emmanuel de Vienne, c.p.). Na Amazônia ocidental, de modo semelhante aos Trumai, em alguns grupos as pacas são presas caçadas exclusivamente com cães. Entre os Kanamari, por exemplo, o uso de cartuchos de espingarda para matar um animal que pode ser caçado por um cachorro é considerado um grande desperdício (Costa, c.p). Em outros grupos, como entre os Matsés, além das pacas os cães servem para auxiliar a caça de pecaris, antas e veados – segundo Redford & Robinson, antes da chegada dos cães estas presas nem eram caçadas (1987: 662). 63 Ao contrário dos Trumai, que entraram no Alto Xingu no século XIX, os demais altoxinguanos não comem paca. Em relação aos outros grupos, conforme Carlos Fausto (c.p.), o único mamífero caçado é uma espécie de Cebus. 89 Uma característica recorrente na Amazônia é a especialização de um cão na caça de uma presa específica. Falando sobre os Tarumãs, grupo hoje extinto, mas à época localizado nas Guianas, Gastão Cruls diz que os cães “são treinados para essa ou aquela qualidade de caça, como onças, pacas, veados e caititus” (Cruls, 1944: 177). Outro exemplo etnográfico desta característica é fornecido por Bento (2013: 97). Já entre os Tupi-Mondé (Gavião) de Rondônia, os cães especializados na caça de um animal específico possuem status diferenciado nas aldeias. Em conversas cotidianas sobre a caça, como mostra o autor, há um gosto por ressaltá-los, dentre os comuns, como o “cachorro que pertence a tal pessoa e que é bom para farejar determinado animal (...) Dizem que são cachorros ‘bons para paca’, ‘bons para anta’, ‘para veado’ e assim por diante” (id: 97). Cabe-nos, agora, tratar dos modos pelos quais os cães são utilizados na atividade cinegética. Mesmo com bastante variação entre os grupos, algumas características da atuação do animal na caça são recorrentes. Embora em alguns casos os cães sejam responsáveis pela caça direta do animal (tal como nos casos dos Kanamari e Matsés, vistos acima), é mais comum que ele exerça o papel de auxiliar no abatimento da caça por meios indiretos. São dois os principais modos pelos quais este auxílio é exercido: em primeiro lugar, é comum o rastreamento e a localização da presa, seguidos da sinalização ao caçador para que este então a abata; por fim, há também a prática de acuar64 a presa, de modo a diminuir as chances dela escapar aos caçadores. Estas duas formas serão melhor detalhadas a seguir. Localizar, rastrear e sinalizar a presa ao caçador são funções comuns dos cães quando participam da atividade cinegética. Antes de começarem a exercê-las, porém, em alguns casos os cães são introduzidos pelos caçadores nas florestas amarrados em coleiras. No caso dos Awá-Guajá, essas coleiras -- feitas de cipó ou embiras, ou improvisadas com cordas velhas -- permanecerão presas aos cães “até que o dono do animal considere adequado” (2010: 286). Quando livres, os cães passam a andar pela mata a fim de localizar a presa até que, tendo a localizado, passe a rastreá-la. A sinalização aos caçadores da localização é feita por meio dos latidos: “the dogs bark upon detecting the presence of prey, usually by smell” (Koster, 2009: 578); como 64 O termo “acuar”, inclusive, aparece no Vocabulário de caça, publicado em 1944 por Ciado Lessa. Segundo o autor, “dos caçadores e cães que se diz que acuam, [o fazem] quando cortam a retirada à caça, forçando-a a fazer-lhes frente; da caça quando, fazendo pé atrás, para, conservando ameaçadoramente os cães à distância, latindo de modo compassado, sem se animarem a entrar em luta com o animal perseguido” (id: 24). 90 aponta o Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied em sua viagem à Amazônia no início do século XIX, “depois que o cão dá o sinal, há tempo para o caçador aproximar-se sorrateiramente e lançar a flecha sobre o animal” (1942 [1815]: 294). Como já adiantado, a localização e o rastreamento da presa não são as únicas funções cumpridas pelos cães na caça. Sobretudo quando estão em grande número, os cães precisam também cercar o animal caçado, de modo a evitar sua fuga. Esta estratégia venatória é comum na caça de cotias, quando a presa, então acuada, esconde-se dentro de grandes galhos caídos das árvores. Entre os Hupda, por exemplo, para que a presa não escape pelos buracos os cães precisam vasculhar tudo ao redor dos paus caídos. Nas palavras de João Paulo Barreto, muitas vezes a cotia consegue entrar e sair por outro lado [das tocas/buracos], e quando acontece isso os cachorros retomam a caçada. Por isso é que realizam a operação pente fina, praticamente vasculhando todo o espaço próximo ao pau caído em que a cotia adentrou;só ́ depoisdisoé que balançandoorabooscachor osdão sinal de acuamento com seus latidos compassados (s.d., 6-7). Também é comum que o acuamento da presa ocorra até os limites da mata. Na região do Juruá-Purus, por exemplo, os cães sentem a presença das presas por meio do cheiro e, consequentemente, correm pela mata “até acuarem as presas em barreiros e igarapés, facilitando a caçada para o caçador homem” (Almeida & Dias, 2004: 29). Entre os Trumai no Alto Xingu, como já colocado aqui, os caçadores se tornam aptos a alvejar as pacas quando estas, então acuadas pelos cães, jogam-se nos rios. Falando sobre os Amahuaca, Robert Carneiro apresenta uma descrição que resume bem as funções do cão enquanto auxiliares da caça na Amazônia: By catching the scent of animals and following their spoor, dogs enable the hunter to locate more game than he could by himself. Dogs are also very helpful in locating animals living in burrows or hollow tree trunks. Besides finding game, dogs also help in killing it by bringing it to bay, or by so annoying an animal that it stops to bite 91 or snarl at his pursuers, thus allowing the hunter to catch up with it (Carneiro, 1970: 336). Como visto ao longo deste tópico, os cães participam da atividade cinegética enquanto animais auxiliares e precisam exercer as suas capacidades sensíveis para que obtenham sucesso. Quando soltos pelos seus donos para localizar, rastrear e/ou acuar os animais no mato, diversas sensibilidades caninas devem estar apuradas. A sensibilidade olfativa, por exemplo, é constantemente mencionada na literatura etnográfica da Amazônia como uma capacidade necessária dos cães para que estes logrem sucesso na caça. Nas palavras de Barreto, “a princípio é o olfato que entra em ação [na atividade cinegética], pois, é através do cheiro que [os cães] constatam a presença da caça” (s.d., 8). Em relação aos Karitiana, Vander Velden menciona a importância da faculdade olfativa para que o cão se torne apto a participar da caça: “aprende-se a caçar, ainda, pelo ‘cheiro’, como afirmam os Karitiana. Gumercindo, por exemplo, contou-me que os cães aprendem rápido quando são postos para cheirar as presas abatidas trazidas para as aldeias” (2016: 30). Tal importância do apuramento das capacidades sensitivas na prática da caça não se aplica apenas aos cães65. Em relação à capacidade olfativa, Laura Rival mostra como o caçador Huaroani adquire a capacidade para perceber e conhecer a floresta por meio do cheiro. Quando “seu corpo adquire o cheiro da floresta, cessando o estranhamento com o ambiente”, os caçadores se tornam aptos a enxergar a floresta da mesma maneira que os animais a enxergam (1996: 132). David Rodgers, por sua vez, mostra como o apuramento das faculdades sensíveis é responsável pela compatibilidade e comunicação entre os seres presentes na mata (2002: 96-7): Os territórios dessas espécies se definem menos por seus abrigos, ewr (maloca, ninho, bolsa), do que por sua expressividade – derivada de cheiros, cores e sons. Os aromas são cruciais para 65 O estudo de Seeger sobre a ornamentação corporal dos Suyá foi proeminente neste tema. Em Índios e nós, de 1980, o autor comenta por exemplo que “os discos labiais ou auriculares estão claramente associados com a importância cultural atribuída à audição e à fala da maneira como são definidas pelos Suyá” (1980: 49). Vander Velden, por seu turno, apresenta de maneira semelhante um exemplo da importância dos sentidos em situações alheias à caça. Em relação à capacidade olfativa, por exemplo, o autor menciona que “os odores são agentes poderosos da percepção do universo em geral, dos seres que o povoam e das modalidades de relação que eles entretêm, em especial com respeito à difusão das doenças” (Vander Velden, 2012: 95). 92 determinar a compatibilidade das espécies, suas zonas de coabitação, os ritmos sazonais de sua fruição, mutação e declínio, e assim por diante. Os humanos são, por sua vez, também inseridos no mundo da floresta segundo linhas particulares de ‘comunicação sensível’. A possibilidade de constatar a presença de uma presa na mata, nesse sentido, depende do aguçamento dos sentidos tanto dos humanos caçadores quanto de seus cães auxiliares. Como mostra Bento a respeito dos Tupi-Mondé (Gavião), caçadores e cães podem alterar o seu potencial venatório através do uso de plantas ou por meio de outros processos “que permitem alterar disposições e afecções do corpo (como tornálos mais leves ou mais dispostos)” (2013: 34). Assim como a capacidade olfativa já mostrada aqui, a fala e a audição também são atributos importantes para que caçadores e cães obtenham sucesso na atividade cinegética. Entre os Hupda, de acordo com Barreto, é importante que o cão no momento em que está localizando a caça não perca a comunicação com a sua dona66. Relatando uma expedição de caça, o autor diz que sua mãe se utilizava de estratégias “metodológicas e linguísticas” que condicionavam a comunicação entre ela e os cachorros: “minha mãe conhecia bem as estratégias, e assim, ao ouvir os cachorros descendo, já sabia que a cotia desceria primeiro no rio e com base nisso fazia os cálculos para se posicionar com a canoa” (s.d., 8-9). A visão também é relatada como um sentido importante para o cão caçador. Quando partem para localizar as presas na mata, os cães precisam ter esta faculdade apurada pois, assim, conseguem acompanhar os rastros do animal. Segundo Arlindo Goes Yanomami (c.p), o cão considerado bom caçador é aquele que consegue estar “consciente de seus passos” na mata pois -- tanto no período da noite quanto ao longo do dia -- eles podem perder o caminho de retorno à aldeia. A importância da capacidade visual dos cães de caça é mencionada também por Santos Granero: entre os Yanesha, segundo o autor, os caçadores colocam pimenta nos olhos dos cães de modo a aguçar a visão do animal (c.p). Este tipo de técnica será objeto de reflexão a seguir. 3.5 Rituais e técnicas: preparações para a caça 66 A respeito do importante papel assumido pelas mulheres na caça com auxílio de cães, ver capítulo 2. 93 Segundo Marion Schwartz (1997: 47), autora de History of dogs in early America, diversos rituais eram realizados por grupos indígenas das Terras Baixas da América do Sul com a finalidade de preparar os cães para a atividade cinegética. Nos exemplos apresentados pela autora, tais rituais eram realizados por xamãs e tinham como propósito afastar a presença de espíritos inimigos na caça, bem como assegurar que as presas pudessem ser encontradas sem que houvesse adversidades aos caçadores. Embora a autora não tenha mencionado os grupos específicos nos quais tais rituais seriam realizados, em outras etnografias da região amazônica e adjacências encontram-se relatos de rituais de caça protagonizados por cães. Em sua etnografia sobre os Aguaruna Jívaro do Peru, Michael Brown indica que os cães de caça sempre foram objeto de considerável atividade ritual. Nas palavras do autor, “festas inteiras eram destinadas a dotar um cão de força e habilidade” de modo a obter sucesso na caça (1985: 79). Além de realizar tais festividades, os caçadores Aguaruna no decorrer da atividade cinegética também entoam cantos dirigidos aos cães. No início destes cantos, especialmente, há também referência à importância das mulheres na atividade: Nugkui woman, Nugkui woman Instead of lying sleepily You arise To my wild dog putiikam [Ictyon venaticus] The chewed manioc May you give The mouth of new tobacco May you give. (Brown, 1985: 79) Esta mulher que oferece mandioca mastigada e a planta ao cão, denominada Nugkui, é do ponto de vista das mulheres “the most important powerful being is Nugkui” (Idem: 50). Com o objetivo de incitar a destreza do animal e de evitar que ele se machuque, este canto faz referência também ao sonho dos cães: [...] My wild dog putukam I will make rise Brother, brother [i.e., the dog] 94 What do you think can happen to you? Sadly you awake Is it your own bad dreams? Scraping hesitantly your claws You are You go, you go (Brown, 1985: 80) Embora não seja exatamente um canto, entre os Hupda as palavras proferidas pela mulher na caça é importante para a destreza do cão. Segundo Barreto, o sucesso da caça é condicionado por via destes “meios simbólicos” que propiciam a comunicação entre o cão e sua dona. Nas palavras do autor, (...) ao passo que acompanhávamos a ação dos cachorros na mata, à longa distância minha mãe os acompanhava com a seguinte linguagem em tukano (ela sendo tuyuka): - He co, he co, he co, turti pū! Era como se estivesse dizendo: sigam em frente, não desistam, tenham fôlegos, e acuem pra dentro de pau oco caído” (s.d, 5-6). Além destes cantos e palavras rituais, encontra-se na Amazônia, também, rituais de tratamento do corpo do cão. Entre os Karitiana, segundo Vander Velden, a aplicação de pimentas, folhas e mesmo insetos no focinho dos cães espelha os procedimentos rituais, realizados no passado, nos quais os caçadores eram submetidos a múltiplas ferroadas de diferentes variedades de vespas por todo o corpo. Denominado osiipo, este ritual tinha como objetivo revelar no caçador uma pele nova, cheirosa, e por isso mais atrativa às presas. Em relação aos cães, como diz o autor, raspas do caule de plantas (provavelmente de espécie Caladium spp.) são misturadas com pimenta malagueta e podem ser aplicadas diretamente no ânus e nas narinas dos cães (2016: 29). Nas Terras Baixas da América do Sul, diversas são as técnicas utilizadas para desenvolver as capacidades ou aprimorar as habilidades cinegéticas dos cães caçadores. Como a principal forma do cão detectar a presa é pelo cheiro (Koster, 2009: 577), em muitos grupos, assim como no caso dos Karitiana, determinadas espécies de plantas são colocados e esfregadas nas narinas do cão. Entre os Amahuaca, por exemplo, é necessário que certa planta, conhecida regionalmente 95 como piripiri67, seja colocada no focinho e nos olhos dos cães (ou dada a eles como bebidas) para que encontre certas presas. Quando o cão deixa de ter eficiência na caça, seu dono tenta melhorar sua sensibilidade ao odor do animal colocando “tapir dung, pepper juice, or a paste of ants' nest up the dog's nostrils” (Carneiro, 1970: 340). Ainda sobre os Amahuaca, Dole reafirma os dados apresentados por Carneiro: Los cazadores utilizan perros para seguir la pista de los animales y también para defenderse de los ataques del jaguar. Para hacer del perro un mejor buscador, algunos cazadores les aplican en la nariz y los ojos una infusión de hierbas, o ponen en sus narices pimienta, excremento de tapir o polvo de nidos de hormigas, sustancias que embadurnan con sangre de tapir (Dole, 1974: 166). Diversas espécies de plantas são aplicadas nos corpos dos cães nas mais diversas regiões etnográficas das TBAS. Também na Amazônia peruana, mas já nos contrafortes dos Andes, entre os Yanesha, como afirma Santos Granero (c.p), tanto homens quanto mulheres que participam da caça usam “plantas especiais mágicas” da família das ciperáceas a fim de desenvolver as habilidades cinegéticas dos cães. Na Amazônia equatoriana, entre os Ávila-Runa, as folhas Desmoncus polyacanthos, uma espécie de palmeira comum na região, são espessadas em forma de espinho e passadas no corpo dos cães com o objetivo de torná-los menos assustados na caça (Kohn, 2002: 155). Falando sobre grupos localizados nas regiões das Guianas, Gastão Cruls, em sua Hileia Amazônica, mostra que certas plantas são passadas pelos caçadores nos pelos dos cães também para que evitem o confronto com as onças. De cheiro almiscarado, e por lembrar o odor que se desprende de animais que o felino respeita (como porcos do mato, cobras e jacarés), a planta Malvácea (Hibiscus abelmoschus) é passada nos cães e “assim, quando o cão cai entre as garras, [o felino] larga-o logo, na dúvida de ser um daqueles animais com quem prefere não medir forças” (1944: 78). Por fim, outro modo de manipular o corpo dos cães caçadores por meio da utilização de plantas é descrito por Bento a respeito dos Gavião de Rondônia. Entre este povo, 67 Piripiri (e priprioca) são termos regionais para designar plantas da família das ciperáceas. Os ye’kuana, por exemplo, aplicam a raiz ralada dessas plantas no topo da cabeça dos humanos, de modo a proteger as pessoas que vão derrubar as roças (Silva, 2017: 46). Esta planta é, ademais, usada na indústria de perfumes. 96 uma planta que eles denominam borar é passada no corpo do cão para retirar dele a preguiça, fazendo-o disposto a caçar até que a atividade seja bem-sucedida. Se o uso do borar em humanos tornou-se uma prática pouco utilizada atualmente, a aplicação da substância em cães continua a ser frequente e faz com que cães bons caçadores sejam diferenciados dos demais (2013: 97). Em alguns casos, as plantas são misturadas com outras substâncias. Charles Wagley descreve dois processos rituais realizados entre os Tapirapé com o objetivo de capacitar as habilidades cinegéticas dos caçadores. Embora as descrições sejam relativas apenas aos humanos, o autor mostra que o mesmo processo pode ser realizado com os cães de caça: “Os cachorros de caça atacados de panema podem ser tratados do mesmo modo, quer com banhos, quer com fumigações” (1957: 122). Na fumigação, pimentões, teias de aranhas e alhos são misturadas em uma vasilha de barro e colocadas por cima de algumas brasas. O caçador, ou no caso o cão, deixa então que a fumaça se espalhe por seu corpo em geral68 (1957: 120). No caso dos caçadores, descrito por Wagley, são os braços, as pernas e as costas. Os banhos rituais, por sua vez, são: Uma das receitas mais fortes que Enéas costuma dar aos caçadores atacados de panema [e que também se aplica aos cães] é a seguinte: esmaga-se numa cabaça um pedaço de ninho de cauré, um pedaço de ninho de sapo cunauaru, umas folhas de baunilha e de aninga (flor aquática), dois pimentões e uma pitada de alho. Deixa-se a mistura absorver o sol e o "orvalho da noite" durante vários dias. Aplica-se depois, no banho, levemente, durante três sextas-feiras consecutivas antes da lua cheia. A lua cheia, explicou ele, invalidaria o tratamento. (Wagley, 1957: 121). Entre povos caribe das Guianas, os banhos são formas de exercer cuidado sobre os cães bem sucedidos na caça. Entre os Aparai, segundo Coutinho Barbosa, os cães bons de caça recebem certas regalias: passam com frequência por inspeções cuidadosas e banhos demorados, livrando-se de pulgas, carrapatos, bernes e outras 68 No caso dos caçadores, esta fumaça inicialmente é passada pelos seus braços, costas e pernas. Depois, recomenda-se que o paciente segure a vasilha perto de seu queixo, deixando a fumaça espalharse pelo seu rosto. Já terminando o procedimento, “deverá conservar a boca aberta e deixar a saliva escorrer dentro da vasilha até que as brasas se apaguem” (Wagley, 1957: 120). 97 pragas que afligem os demais. Já entre os Waiwai, os cães bons de caça são levados ao rio para banharem-se mais de uma vez ao dia, têm seus piolhos e larvas extraídos de seu corpo e são, enfim, vestidos com adornos humanos (Howard, 2001: 243). Ainda na região das Guianas, os cães, nas palavras de Marc Brightman (c.p), têm seus corpos manipulados desde o nascimento: suas caudas são torcidas, alguns de seus pelos são arrancados e seus focinhos são picados por formigas para que melhorem sua capacidade olfativa e sua visão. A aplicação de formigas ou outros insetos no focinho dos cães é, como já sugeri, uma prática recorrente na Amazônia: entre os Karitiana, o treinamento dos cães caçadores é realizado por meio de picadas de formigas e vespas no focinho do animal; e o mesmo acontece, por exemplo, entre os Kayapó, onde o inseto é amassado e misturado com sumo de urucum para serem esfregadas nos corpos dos cães de caça (Vander Velden, 2016: 29). A rica descrição de Gastão Cruls mostra como este processo era realizado entre os Tarumã: O índio, contudo, por mais que confie no tiro da sua flecha e no olfato do seu cachorro, ainda cerca o ritual da caça de várias superstições. Assim, não raro, faz-se picar, e também, aos cães, por certas formigas que aumentariam em ambos a acuidade visual. Essas formigas são presas, vivas, a uma esteirinha de palha, em forma de esterno de veado, e que é levada sobre o peito, à maneira de um escapulário. O trançado imobiliza as formigas pelo meio do corpo, de tal modo que o seu trem anterior se projete sobre uma das faces da esteira e o trem inferior sobre a outra (Cruls, 1944: 77). Forçar o cão a ingerir determinadas substâncias também é uma forma de garantir ao animal maior resistência, faro aguçado, visão melhorada, e enfim, capacidades cinegéticas aprimoradas. Entre os Achuar, como mostra Descola (2006), os cachorros recebem alucinógenos para que tenham um olfato mais aguçado e, entre os Kanamari, os cachorros recebem o wakoro (ou kambô, nome Katukina-Pano), substância extraída da barriga do sapo e ingerida para curar o azar (panema) na caça (ver Coffaci de Lima, 2014). Na região do Rio Purus, antigamente os índios 98 Catauish69 atribuíam aos cães, como estimulante de caça, uma substância inalável denominada pó-de-paricá, a qual, segundo Soentgena e Hilbert, é bastante disseminada na Amazônia, sendo utilizada na produção do rapé (Soentgena & Hilbert, 2016: 1148). Não só este tipo de substância, contudo, que quando ingerida propicia mais eficiência aos cães caçadores. Em grupos indígenas amazônicos localizados em regiões diversas, como entre os Wayana (Linke, c.p.), Tukano (Langdon, c.p.) e Yanomami (Arlindo Goes, c.p), os cães recebem de seus donos partes específicas da caça, as quais são preparadas e cozidas. Os Siona-Tukano, por exemplo, afirmam que os cães caçadores que não são alimentados com as tripas cozidas dos animais caçados ‘pensam mau’ de seu dono, resultando na morte prematura deste último (Langdon, c.p.)70. Há também grupos que apenas esfregam a carne da presa nos cães caçadores. Como expõe Uirá Garcia, sempre que os Awá-Guajá matam um animal de grande porte (como antas e porcos), "esfregam o focinho do cachorro na presa morta, gritando com ele para que ‘aprenda’ (imarakwá – ‘lembrar’) o cheiro da mesma e passe a caçar melhor" (2010: 300). Entre os Tarumã, igualmente, crê-se que “o faro do cão se afina desde que lhe sejam esfregadas sobre o focinho certas lagartas que para isso são previamente assadas” (Cruls, 1944: 77). Para finalizarmos a apresentação desse conjunto de técnicas, há também a confecção do corpo do cão por meio do uso de adereços corporais. Entre os Ka’apor, por exemplo, os cães são adornados com colares produzidos com madeira da ‘árvorecaititu’ (makahi-mira). Segundo Willian Balée, esta madeira 'cheira' (piher) como o couro de caititu e, quando ela é colocada no colar do cão, ajuda o animal a se tornar um caçador mais eficaz (1994: 112). Já entre os Akawaio, os cães “são vestidos com amuletos de formigas, algo que lhes confere mais eficácia na caça” (Butt-Colson, 1976: 454 apud Vander Velden, 2016: 29); e entre os Waiwai, o corpo dos cães é regularmente pintado com jenipapo. Com isso, sua coloração escura torna seu corpo invisível aos espíritos inimigos na floresta (Howard, 2001: 246). 2.6 Conclusão 69 Atualmente, não há registro deste grupo na região. Por utilizarem referências cronistas do século XIX, imagino que Soentgena e Hilbert estejam se referindo a um grupo extinto. 70 Sobre mais dados acerca da alimentação dos cães, ver cap. 2. 99 Ao final da terceira seção deste capítulo, que tratou da abordagem americanista da caça, questionávamo-nos sobre qual seria o modelo (adaptacionista ou da predação simbólica) mais adequado para refletirmos sobre a presença e atuação dos cães caçadores na Amazônia. A linha de raciocínio percorrida para respondermos esta questão, aparentemente, aproximou-nos do modelo adaptacionista. Pelo que foi mostrado até aqui, os cães são utilizados como caçadores na Amazônia para que a atividade seja melhor sucedida, isto é, para que as “taxas de retorno” (Ross, 1978) sejam maiores. As técnicas elaboradas e os treinamentos dos cães, apresentados neste capítulo, foram tratados como meios de capacitação e aprimoramento das habilidades cinegéticas do animal. Não obstante, muitos dos dados descritos nas etnografias -- e alguns deles já reproduzidos neste capítulo -- oferecem uma linha de reflexão diferente daquela que vimos percorrendo. Antes de partirmos para esta outra linha de raciocínio, é mister sublinharmos o corpo dos cães como o critério da sua personalização (como vimos, nos nomes a eles atribuídos) e como um dos motivos de sua associação ao jaguar (pela morfologia que os seres compartilham). Em relação aos nomes, o corpo é o dispositivo principal pelo qual a maioria dos os nomes próprios são definidos. Pretos, malhados, entre outros, são alguns dos nomes atribuídos aos cães e que designam as suas características físicas. Este fenômeno, como mostrado, é amplamente recorrente nas diferentes regiões etnográficas da Amazônia. Como mostra Descola, a nomeação dos cães a partir de seus traços físicos ou características comportamentais leva a uma personalização do animal: The personalization of dogs can be seen first of all in the fact that, of all domesticated and pet animals, it alone receives a proper name, just like humans. It will usually be named for its color, for a physical trait, or for a quality it either possesses or that one would like it to acquire: for instance: wampuash (kapok) if the dog is white, or makanch (fer-de-lance) if it is aggressive and fast on the attack (Descola, 1994: 231). A perspectiva adotada por Descola acerca da nomeação remonta às análises proferidas por Lévi-Strauss em O pensamento selvagem (2005 [1962]), onde os 100 nomes próprios são tratados como “modos de fixar significações, transpondo-as para os termos de outras significações” (idem: 194). Ao falar sobre a onomástica dos Iugbara, localizados em Uganda, Lévi-Strauss aponta características semelhantes àquelas que vimos no caso da nomeação dos cães na Amazônia: Dos 850 nomes coletados no interior de um mesmo subclã, três quartos se referem ao comportamento ou ao caráter de um ou de outro parente: em-preguiça, porque os pais são preguiçosos; no-pote-decerveja, porque o pai é bêbado; não-dê, porque a mãe alimenta mal o seu marido etc. (...) Esses nomes preexistem aos indivíduos que os usam, eles lhes são atribuídos devido a uma condição que objetivamente é a sua mas na qual outros indivíduos podem igualmente se achar e que o grupo toma como carregada de significação (2005: 202). Além do aspecto da nomeação, fora mostrado também como o corpo do cão e seus atributos de ferocidade fazem com que o termo atribuído à sua espécie seja, geralmente, associado ao termo atribuído ao jaguar. Já em relação à caça, o corpo aparece como objeto cuja transformação tornará os cães mais eficientes na atividade. Os dados apresentados até aqui sobre as técnicas de capacitação cinegética fazem referência ao dispositivo do corpo do cão e sua transformação: as picadas de formigas nos focinhos, a utilização de amuletos, entre outros, nestas técnicas este dispositivo aparece como índice de determinação da eficiência do cão na caça. Não obstante, não me parece suficiente reduzir o empreendimento das técnicas de capacitação cinegética dos cães à garantia de maior produtividade na caça. Em muitos grupos, inclusive, a eficácia da participação do animal enquanto auxiliar dos caçadores é questionada. Esse fato é atestado em algumas etnografias, como entre os Tapirapé, onde, para Wagley, “their [dogs] aid in hunting is rather dubious” (1977: 60)71. Um dos fatores que nos leva a não reduzir a importância do cão às suas qualidades venatórias é o fato do animal acompanhar seus donos na floresta para exercer funções que não a de auxiliar na caça. Em grupos onde a atividade cinegética 71 Como mostra Koster, “even in settings where dogs are regularly used for hunting, some ethnographers question the overall effectiveness and value of dogs (Hugh-Jones 1979:30; Lizot 1988: 503; Wagley 1977:60 apud Koster, 2009: 577)”. 101 é pouco praticada, como entre os Tikuna do Rio Solimões, por exemplo, os cães “acompañan a veces a los adultos en la selva cuando se van a buscar frutas o otros vegatales y no he visto cuando van de vista a otra maloca” (Goulard, c.p.). Entre os Aparai, de modo semelhante, os cães comumente acompanham seus donos para passear na mata. Como mostra Coutinho Barbosa: “Piano, Kupixuru e Marreteiro também são chamados para esses passeios (...) eles vão com toda a família às roças e à mata para buscar lenha, tubérculos e frutas” (2007: 128). O exemplo mais expressivo a respeito da atuação dos cães em grupos não-caçadores é fornecido por Magnous Course (c.p.): Mapuche people around Lago Budi don't hunt any more, but dogs do chase out pigs from fields. In terms of sense, if Mapuche people are walking at night and get scared of malevolent spirits, they wipe some fluid from dogs' eyes and smear it on their own eyes thus allowing them "to see like dogs". This allows them to see malevolent spirits that would otherwise be invisible. I think this is actually quite a widespread practice across the Americas. Embora o caso narrado por Course não seja oriundo de um grupo amazônico, ele reforça um ponto interessante, a saber, da capacidade do cão de lidar com os espíritos maléficos encontrados na floresta. Esta, segundo Course, seria a razão da companhia do animal ali. Não apenas auxiliares dos caçadores na atividade cinegética, os cães parecem, nesse sentido, assumir um papel mais amplo: o de auxiliares (ou melhor, protetores) dos índios contra os espíritos inimigos. Na região do Alto Xingu, em um grupo não caçador (como os Kuikuro) a presença dos cães na mata é fundamental para a proteção contra os encontros com jaguares (reais ou imaginários) (Fausto, c.p.). Na região da Amazônia ocidental também se encontram dados interessantes. Entre os Kanamari, o latido de um cão à noite é motivo para que todos na aldeia acordem e vejam do que se trata (Costa, c.p.). Entre os Paumari, por seu turno, se em um ritual noturno os cães começam a latir, isso significa que eles estão sendo colocados em condição de perigo, já que este contexto ritual noturno é propício à circulação de espíritos auxiliares das onças (Bonilla, 2007: 234). Ainda entre os 102 Paumari, o termo Jomahi, utilizado para designar os cães, o é também para designar os jaguares e a categoria de espíritos auxiliares (idem: 416). Entre os Suruahá, por fim, a categoria de “cão de caça” denota basicamente a posição de auxiliar. Os humanos têm o cão como animal auxiliar da caça assim como os espíritos-donos do veneno (kunaha karuji iri juma) têm suas onças-cães como auxiliares. De forma semelhante, o espírito-dono do timbó (kunaha karuji) anda sempre acompanhado por seus juma, “algumas vezes descritos como cães ou onças e outras vezes como espíritos parecidos com os representantes do povo juma, guerreiros canibais” (Huber-Azevedo, 2012: 440). Ainda entre os Suruwaha, o que para os humanos é visto como frutas de uma árvore, por exemplo, na verdade são “cachorros de caça” do espírito antropomorfo da árvore frutífera: Quando se vai buscar frutas de pequi (azana), por exemplo, diz-se (ao espírito do pequizeiro Azana Karuji): “Já pode soltar a corda dos seus cães” (Ara marihi ahuri tabaru!). Quando o espírito do pequizeiro resolve ir caçar e solta os seus cães, as frutas (aga buji nahiri – “o que para nós tem a forma corporal de uma fruta”) caem e podem ser colhidas pelos humanos. (Huber Azevedo, 2012: 230). A categorização do cão como animal auxiliar em geral nos leva a tratar da sua participação na caça, sob o controle de um dono humano, apenas como uma manifestação particular desta generalidade. O mesmo pode ser pensado a respeito da função de proteção exercida pelo animal. Assim como vimos com relação à proteção nas aldeias, por meio dos latidos, em muitos grupos amazônicos os cães acompanham os humanos na floresta ou nas roças por conseguirem visualizar os espíritos maléficos. Entre os Yanomami, como diz Arlindo Goés Yanomami (c.p), aqueles cães que se colocam à disposição dos seus donos para vigiar os espíritos maléficos adquirem status elevado, praticamente se tornando um membro da família. Entre os Kuikuro, de modo semelhante, os cães vigiam os arredores das casas na aldeia para proteger os humanos dos feiticeiros (Fausto, c.p.). Nesse sentido, assim como a importância dos cães na Amazônia não pode ser reduzida à sua participação e eficiência na caça, a transformação corporal do animal, como vimos nas técnicas empregadas, não pode ser reduzida a um mecanismo de treinamento, ensinamento ou educação das habilidades cinegéticas. Em artigo recente, 103 Vander Velden argumenta que as técnicas empregadas aos cães visam aumentar uma capacidade já inerente ao animal: As técnicas empregadas para “fazer” cachorros caçadores podem se referir menos ao ensino ou educação dos animais, e mais a uma busca por aumentar as capacidades ou habilidades que os cães já têm ou desenvolvem na companhia dos outros animais: seus “jeitos”. Em contextos em que tudo é gente, e tudo (ou quase tudo) pode ser sujeito, não se trata de intervir no direcionamento dos caminhos do outro, mas de fornecer os meios para que este caminho se potencialize e seja canalizado para funções úteis porque propriamente humanas – o que equivale a dizer, neste caso, caninas, o que dá no mesmo. (Vander Velden, 2016: 34, grifos do autor). Embora eu esteja de acordo que as capacidades cinegéticas dos cães sejam inerentes a eles, e que as técnicas empregadas visam desenvolver tais capacidades (ao invés de ensinar ou educar o animal), discordo quanto a ideia de que “não se trata de intervir no direcionamento dos caminhos do outro” (id: idem). Tal como vimos ao longo desta dissertação, a característica mais ressaltada dos cães nas etnografias onde eles aparecem é a sua ambiguidade, dada a tensão entre o seu caráter feroz e a sua disposição doméstica. O estatuto dos cães de auxiliar dos humanos, nesse sentido, corre sempre o risco de descambar para o estatuto da predação generalizada, isto é, da predação incontrolável característica dos jaguares. As técnicas empregadas nos cães, além de visarem o desenvolvimento das suas habilidades cinegéticas, são também um mecanismo de controle do animal. Como entre os Trumai, há um limite de ferocidade que os cães não podem ultrapassar e, consequentemente, o dono é quem exerce este direcionamento: Tem remédios para tornar o cachorro um bom caçador. Lembro por exemplo que se pode esfregar tal espécie de maribondo, porque ela traz suas presas até seu ninho, no nariz do cachorro. Quando perguntei por que quase ninguém fazia isso, me responderam que o problema é que um cachorro bom caçador é agressivo demais. Tem que achar um 104 equilíbrio entre a convivência com os humanos e a caça (Emmanuel de Vienne, c.p). A mesma situação é encontrada entre os Yuracaré da Bolívia, onde os cães são sangrados no focinho e nas pernas, com ossos de peixes, para que se tornem bons caçadores e também para que sejam educados a não ter nenhum comportamento agressivo indesejado. Como mostra Hirtzel, se por um lado este tratamento fortalece as habilidades de caça do animal e a sua força física, de modo algum ele se destina a despertar uma agressão predatória generalizada: “Les chiens sont des auxiliaires de chasse des humains, mais ne doivent pas pour autant se transformer en “bêtes féroces” (Hirtzel, 2010: 441). Além de evitar que se perca o controle da “agressão predatória” dos cães, o ritual de sangramento entre os Yurucaré é praticado também para que o animal obedeça seu mestre: “Les saignées sont réputées les rendre également plus attentifs et soumis aux ordres de leur maître et leur faire perdre leur agressivité vis-àvis des humains” (id: 441-2). Na Amazônia, os cães são onças, animais ferozes e dispostos à predação, mas também são pets, animais de companhia e dispostos à vida doméstica. Além disso, podem exercer a sua ferocidade tanto em benefício dos humanos, enquanto seus auxiliares na caça, como também podem ser seus inimigos, enquanto auxiliares dos espíritos maléficos. A individuação (ou personalização) do cão através da atribuição de nomes, bem como a capacitação das atividades cinegéticas por meio do corpo, são mecanismos pelos quais seus mestres o cativam a exercer seus atributos ferozes apenas em favor dos humanos. 105 4. Conclusão Identidade-jaguar, identidade cão: sobre os cães na Amazônia indígena No decorrer desta dissertação, espero ter respondido parte das questões que motivaram o meu interesse pelos cães entre os índios da Amazônia. Como vimos no capítulo introdutório, duas foram as pretensões principais deste trabalho. Motivado por certa lacuna na literatura amazônica, o primeiro objetivo era o de evidenciar, a partir de dados secundários, a constante presença dos cães nas aldeias indígenas, além de mostrar a relevância das relações entre os índios e eles. Mesmo que na maioria das aldeias os cães sejam ignorados, deixados de lado ou enxotados, isto não significa que a relação seja desprovida de relevância. Isto posto, o segundo objetivo desta dissertação foi o de discutir temas e questões teóricas da etnologia a partir daquilo que os dados sobre os cães evidenciavam. Tal como já mostrado, refletir sobre a relação entre humanos e animais, ao menos na etnologia ameríndia, mostra-se um exercício produtivo para pensarmos sobre os mais diversos temas. Meu foco nos cães permitiume, assim, refletir sobre a relação entre índios e brancos (inclusive no período da Conquista), sobre as redes de intercâmbio interétnicas, sobre o xamanismo, maestria, onomástica, caça, entre outros temas que há muito, são objetos privilegiados de estudo dos etnólogos americanistas. Alguns destes temas, contudo, merecem um pouco mais de nossa atenção. Nesta conclusão, pretendo discutir com mais propriedade dois problemas teóricos: o da domesticação de animais e o do estatuto de pessoa. Comecemos pelo primeiro. Até o final do século passado, a maioria das etnografias que se debruçou sobre a relação dos índios amazônicos com os animais teve como pano de fundo a ideia de que não houve domesticação de animais autóctones na região, à exceção do pato do mato (Cairina moschata, conhecido como muscovy duck), que, segundo evidências, foi domesticado por diferentes populações nas terras baixas (Vander Velden, 2010: 38; ver Gilmore, 1997: 218). Philippe Descola talvez seja o expoente principal desta 106 tradição, dada a proeminência de seu artigo, publicado originalmente em 1994, que mostra como a domesticação de animais como o pecari, na Amazônia, foi rejeitada pelos índios. Segundo o autor, esta rejeição se justifica pela ausência de relações “objetivadas” entre os índios e o animal: For this reason, terms cannot easily be transferred from one relationship to another, and this ontological resistance constitutes the most decisive obstacle to the movement of transposition that characterizes an objectivization of the original technical relationship (Descola, 2013: 388). Em relação aos animais introduzidos pelos europeus, contudo, Descola reconhece que alguns deles foram adotados e domesticados nas aldeias indígenas amazônicas. Porém, na perspectiva do autor isso só foi possível porque a introdução desses animais implicou uma transmissão de modalidades técnicas e ideológicas, e não uma “reorientação completa da ontologia ameríndia” (id: idem, grifos meus). Os índios da Amazônia preferiram, assim, incorporar objetos técnicos europeus em vez de transformar as relações sociocósmicas nativas. Este argumento se aplica tanto às galinhas e porcos como aos cães: para Descola, este animal foi então adotado pelos grupos das TBAS sem que isso infletisse ou transformasse a ontologia ameríndia: “é muito mais fácil adotar um objeto técnico novo que inventar uma nova relação técnica” (2002: 107). Mais recentemente, esta diferenciação entre as relações com os animais autóctones e aquelas com os animais introduzidos exclusivamente em função da origem do animal foi objeto de crítica. Em sua etnografia sobre os Karitiana, Vander Velden afirma que os animais autóctones são tratados ou concebidos de forma diferente dos animais introduzidos em função de outros fatores. A diferenciação entre filhotes e animais adultos, por exemplo, pode definir o modo do tratamento do animal independentemente do seu estatuto de origem, isto é, independente se o animal é um wild pet ou pet. Com a problematização destes termos de classificação dos animais presentes nas aldeias amazônicas, ao lado de um questionamento do termo doméstico stricto sensu, surge a necessidade de uma rediscussão do argumento segundo o qual os índios das terras baixas não domesticaram os seus animais, especialmente aqueles já presentes nas aldeias antes da chegada dos europeus (2010: 110). 107 Vander Velden também problematiza o argumento segundo o qual a domesticação -- cujo conceito pressupõe a objetivação -- estaria ausente da Amazônia porque na região o que predomina são relações sociais entre sujeitos, mais do que relações reificadas entre sujeito e objeto: Mas, será mesmo que domesticar pressupõe, necessariamente, objetivar? Não estará o conceito corrente de domesticação por demais carregado pela visão ocidental moderna do animal doméstico como servo ou escravo? E mesmo esta caracterização não supõe uma relação social – aquela entre senhor e escravo/servo –, ainda que fundada sobre a assimetria e a violência? E o animal familiarizado sul-americano, não pode ele próprio, estar sujeito a uma forma de quase-objetivação? (Vander Velden, 2010: 109-10, referências suprimidas). Como o caso dos cães nos ajuda a pensar a domesticação na Amazônia? As técnicas de capacitação das habilidades cinegéticas do animal, vistas no capítulo três, poderiam ser tomadas como exemplos de relações de objetivação, isto é, como exemplos da transformação de uma relação entre sujeitos para outra entre sujeito e objeto? Os cães treinados para a caça, nesse sentido, poderiam ser concebidos como seres objetificados a exercer tal atividade em proveito dos humanos? Minha hipótese se aproxima da perspectiva adotada por Vander Velden: mesmo que este caso possa ser interpretado como uma relação de objetivação, tratá-lo como um exemplo de domesticação animal na Amazônia nos leva, automaticamente, a adotar a perspectiva ocidental-moderna do conceito de domesticação. O mais adequado, nesse sentido, seria pensarmos um correlato amazônico ao processo de objetivação. A diferenciação entre as epistemologias ocidental e indígena, proposta por Viveiros de Castro, nos oferece pistas para refletirmos sobre as relações com os cães e sobre a domesticação na Amazônia. Como mostra o autor, ao contrário da visão predominante no Ocidente, segundo a qual sujeitos e objetos são vistos como resultantes do processo de objetificação, na epistemologia indígena aquilo que importa é a subjetificação: “to know is to personify, to take on the point of view of that which must be known.” (Viveiros de Castro, 2004: 468). Em outras palavras, se na visão ocidental o saber significa objetificar ou dessubjetificar, o conhecimento 108 indígena “aims at something that is a someone -- another subject. The form of the other is the person” (id: 469). Mesmo que exista diferença entre o tema que nos cabe nesta dissertação e o tema da epistemologia, o que se depreende da leitura de Viveiros de Castro é que, ao pensarmos sobre as relações entre humanos e não humanos na Amazônia, devemos privilegiar também nas relações de subjetivação. E a mesma inflexão deve ser feita com relação à domesticação na região. Se Vander Velden sugere que podemos, talvez, pensar a familiarização de animais como uma “quase-objetificação”, eu sugeriria que podemos pensar sobre a domesticação dos cães na Amazônia tendo em vista relações intersubjetivas, isto é, tendo em vista relações nas quais aquilo que se disputa são a identidade e o estatuto do cão, mais do que o objeto e sua utilidade72. No capítulo 3, vimos como a explicação utilitarista não é suficiente para compreendermos os cães na Amazônia e sua valorização enquanto auxiliar na caça. O empreendimento das técnicas de capacitação cinegética do animal, em muitos grupos, não garante eficiência na atividade, como mostram alguns autores (ver Koster, 2009: 577). Nesse sentido, não podemos reduzir a relevância do animal na região à sua participação na atividade cinegética. Até porque, em muitos grupos, como já mostrado, eles adquirem outras funções: caminham pela floresta junto com seus donos, acompanham os trabalhos nas roças e, principalmente, vigiam a aldeia ou as residências de ataques físicos ou metafísicos. São seres voltados à predação, na caça, mas também à contra-predação, quando designados à proteção das aldeias. Os cães são, portanto, animais auxiliares73 em geral, mais do que apenas auxiliares na atividade cinegética. 72 Com base em casos etnográficos sobre relações de pastoreio no norte da Ásia, Stepanoff et al. mostram, em artigo recente, como sistemas de criação de gado entre vários grupos nativos lidam com um equilíbrio entre a autonomia animal e o engajamento cooperativo entre humanos e animais. No caso dos cães na Amazônia, também vimos como é importante que o animal adquira certa autonomia quando adulto, de modo a não aproximá-lo (ou controlá-lo em definitivo) dos humanos, algo que diminuiria sua orientação predatória (Stepanoff et al., 2017). 73 De modo bastante incipiente, poderíamos pensar em uma tipologia na qual os cães, enquanto animais auxiliares, se aproximam de animais como o cavalo, por exemplo, e se diferenciam dos demais, animais domésticos ou xerimbabos. Os animais domésticos seriam aqueles de abate, de origem exógena e trocados com os brancos, que cumprem a função de manter e reforçar relações com aqueles que são seus donos; os xerimbabos seriam animais de origem selvagem, criados em aldeia desde a infância; e os animais auxiliares, como os cães e os cavalos, seriam aqueles de origem exógena que maximizam atividades nativas e com uma exo-orientação. Uma classe de animais que não se insere nessa tipologia, porém, é a dos pássaros. São xerimbabos, mas ao mesmo tempo fornecem dádivas de matéria prima para a confecção de ornamentos rituais. Catherine Howard, inclusive, menciona o caráter anômalo dos pássaros entre os Waiwai (1991, 50-69). Agradeço a Luiz Costa por compartilhar esse 109 Mas se a fabricação corporal e todo o complexo de técnicas descritos no capítulo anterior não servem apenas para a capacitação cinegética dos cães, isso não significa que elas sejam desprovidas de função. A direção deste potencial auxiliar dos cães está em disputa, já que eles são também auxiliares dos espíritos, e tais técnicas são promovidas justamente para direcionar o aproveitamento da predação-proteção a favor dos humanos, e não a favor dos inimigos (isto é, inimigos reais, como invasores das aldeias, ou espíritos inimigos). Em outras palavras, os cães podem exercer a sua ferocidade tanto em benefício dos humanos, enquanto seus auxiliares na floresta ou na aldeia, mas também podem ser seus inimigos, enquanto auxiliares dos espíritos inimigos. Como diz Eduardo Kohn a respeito dos Runa, assim como os cães são onças, as onças são cães, isto é, são seres subservientes dos seres espirituais ou dos mestres dos animais: “what we think of as a jaguar is actually [the spirit animal master’s] dog” (2007: 11). Mas voltemos ao que diz Descola. Diferentemente do que ocorre na Nova Guiné, segundo o autor, os índios da América do Sul não-andina não domesticaram animais, especialmente para fins alimentares, porque isso implicaria subtrair-lhes sua condição de pessoa, ou seja, implicaria “objetivá-los” (2002). O que tentei mostrar ao longo desta dissertação é que, na relação entre humanos e cães na Amazônia, o animal é utilizado como auxiliar dos humanos, e controlado por seus donos para tanto, sem que isso pressuponha a subtração do seu estatuto de sujeito. O que está em jogo não é a subtração do seu estatuto de sujeito, mas sim a definição contextual de sua identidade, que pode variar entre a identidade-jaguar, cuja predação é generalizada, e a identidade-doméstica, cujo potencial predatório é controlado pelos humanos. Nesse sentido, diferentemente da objetivação, na qual o controle é exercido por um sujeito perante o objeto, neste modo de relação que denomino subjetificação o controle não pressupõe a transformação de um sujeito em objeto, mas sim a disputa de um sujeito pelo controle da identidade de outro sujeito. Como vimos no capítulo 3, uma das razões para que se exerça o controle do cão é a necessidade de evitar que o animal seja apropriado como auxiliar de um espírito inimigo. Enquanto nos processos de domesticação do Ocidente o sujeito é controlado e fabricado, de modo a se tornar um objeto, na Amazônia, em relação aos cães, o sujeito é controlado e fabricado de modo a se tornar um sujeito-outro. A objetivação dá lugar insight a respeito dessa possível distinção tipológica entre animais auxiliares, xerimbabos e animais domésticos. 110 à subjetivação, mas os dispositivos da fabricação e do controle mantêm-se presentes. A produção de um sujeito-outro, por seu turno, relembra os processos da microprodução da pessoa na Amazônia, “que se constitui e se desconstitui continuamente ao apropriar outros e ao ser apropriada por outros” (Fausto, 2008: 341). No caso dos cães, eles também são seres constantemente produzidos, por meio das relações de alimentação, cuidado e das técnicas corporais às quais são submetidos. Dado o pano de fundo ambíguo e instável que caracteriza todos os seres na Amazônia, o cão está sempre correndo o risco de se tornar um predador incontrolável, como o jaguar, ou de perder parte das suas potencialidades, como os xerimbabos. Em meio a esta tensão, as técnicas aplicadas ao corpo do cão são fundamentais não só para o melhor desempenho nas suas funções de predação e proteção, mas também, e fundamentalmente, para que sua identidade não descambe para um dos dois lados. 111 Referências bibliográficas ALLARD, O. (2003). “Emotions and Relations. A point of view on Amazonian kinship”. 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