Para quem só tem martelo, todo problema parece um prego

Para quem só tem martelo, todo problema parece um prego

Há mais risco de se errar com uma boa ideia do que com uma má ideia. A explicação: esquecemos que as boas ideias têm limites. Entenda porque os modelos mentais são a chave para o sucesso ou fracasso e como as pessoas realmente inteligentes os utilizam. 

Comecei a trabalhar cedo. Aos 15 anos já tinha carteira assinada como atendente no McDonald’s da Avenida Angélica, em São Paulo. Aos 17, fazia faculdade no interior, morava longe da família e já não dependia de ninguém para pagar todas as minhas contas. Não que fosse fácil. Trabalhava horas extras, passeava com cachorros, fui palhaço e mímico em festas de criança. Já bati cartão até como coelho do Shopping Ibirapuera. Foram mais de 20 dias usando um macacão branco e felpudo, com uma cabeça gigante de papel machê peluda com grandes orelhas.

Uma das consequências de ter pouco e trabalhar muito é que tomar decisões se torna mais fácil. Primeiro vem o essencial, e se sobrar algo, se converte em um pequeno luxo no tempo que restar (e se restar). A alegria vem de pequenas coisas, como comprar algo mais bacana. Ainda lembro da minha primeira “grande compra”. Um colchão das Casas Bahia. Saí da loja carregando na cabeça o colchão de solteiro e um carnê de 12 parcelas no bolso. Caminhei quase 1h com o colchão até chegar em casa. Juntamente com o aluguel da casa onde morava, que eu dividia com outros 5 estudantes, a parcela do colchão era minha grande conta do mês. Quando paguei o último boleto, lembro de comemorar com amigos o feito, foi um marco. Naquele dia também prometi a mim mesmo que nunca mais compraria nada parcelado com juros. Mais de duas décadas se passaram e nunca abri mão desse compromisso.

Apesar das dificuldades, nunca tive a menor dúvida que tudo sempre daria certo. Minha fé era embasada em um sistema de princípios que criei e norteava todas as minhas decisões e se resumia assim:

Trabalho duro + estudo – endividamento = sucesso

Ou seja, se eu trabalhasse mais que os outros, estudasse mais que todos e não devesse dinheiro a ninguém, seria uma pessoa bem-sucedida.

A crença de não comprar a prazo, e não acumular dívidas, surgiu com o colchão. Já a aposta em estudar foi influência direta de minha avó-materna, dona Erotides. Uma ex-professora severa, ela me fez aprender a tabuada repetindo-a todos os dias, das 8h da manhã até as 11h, até não errar um único número. Eu só podia parar quando chegava a hora de me trocar, almoçar e ir para a escola. E cada resposta errada minha era seguida pela sentença aterradora: “Guilherme, podem te roubar tudo, menos o que está na sua cabeça. Se você não estudar, não vai ser ninguém na vida. E não quero ser avó de um ninguém”. Essa história de não ser ninguém sempre me impressionou. Eu associava isso a um episódio da série "Além da Imaginação", em que um homem recebia uma marca na testa que impedia qualquer pessoa de falar com ele. As pessoas fingiam não o ver, independentemente do local e situação, o que o levava ao desespero. Para mim, não estudar deixaria uma marca semelhante, algo capaz de me tornar invisível para o mundo.

Já a crença no trabalho duro veio de observar os pais dos amiguinhos mais “ricos” da rua onde passei parte da infância. Eles eram filhos de trabalhadores de uma fábrica local. Homens que acordavam às cinco da manhã para entrar nos primeiros turnos e depois voltavam invariavelmente cansados, mas garantiam os presentes mais legais da rua para suas famílias. Disso, concluí que se você acorda cedo e trabalha, consegue comprar o que quer.

E não posso reclamar. Minha fórmula do sucesso (Trabalho duro + estudo – endividamento) me levou a empregos cada vez melhores nos maiores veículos de imprensa do país e grandes empresas. Não fiquei milionário, mas ao longo dos anos tive acesso a muito mais do que sonhei.

Mas também percebi que meu sistema de trabalho duro, estudo e endividamento zero, apesar de ter superado minhas melhores expectativas, começou a se esgotar. O primeiro indício veio nos meus anos de jornalista na revista Caras. Ficou nítido que o sucesso não estava atrelado somente ao trabalho duro e estudo. Conheci artistas extremamente talentosos e empenhados, que por mais que estudassem e trabalhassem, não despontavam. Não estar endividado, como era o caso de pessoas milionárias que encontrei, também não era sinônimo de felicidade. Isso chamou particularmente minha atenção no universo da moda. Modelos famosas, ricas e lindas, não raro transpareciam uma tristeza profunda quando não estavam diante das câmeras. E ao contrário do estereótipo, elas trabalham muito e com afinco e, à medida que conseguem, estudam com empenho.

A sensação de esgotamento da minha fórmula se intensificou quando me tornei pai. Comecei a observar as pessoas atentamente. Ser pai é ser um modelo para os filhos. Então, busquei me espelhar nos melhores exemplos. E minha equação do sucesso fazia cada vez menos sentido. Sucesso também era estar com a família, ter paciência diante dos contratempos, aprender a trocar fraldas e dar banho no bebê. Gradualmente, passei a dar cada vez menos importância aos cargos e salários à medida que percebia como a generosidade era uma marca daqueles que escolhia como modelos a seguir.

Em um dado momento, me questionei: e se tudo que eu acredito estiver errado? O sucesso que alcancei pode ser simples obra do acaso. Minha crença no trabalho duro somado ao estudo e menos endividamento talvez não passasse de uma bobagem. Mas velhos hábitos não morrem facilmente. Ataquei o problema com a abordagem familiar: trabalhei duro lendo livros de economia, desenvolvimento pessoal, e principalmente, psicologia cognitiva.

De certo modo, associo as fases da minha vida a certas obras literárias. Na faculdade, o livro "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, foi um divisor de águas. No meu entendimento, a jornada de Hans Castorp era um exemplo a ser evitado. Na história, o jovem engenheiro Castorp vai visitar um primo em um sanatório e decide ficar para tratar uma simples anemia. Mas aos poucos, Castorp se isola do mundo em um devaneio romântico e permanece por anos e anos internado tratando de uma doença aparentemente imaginária. Difícil explicar o impacto da literatura alemã no funcionário do mês do McDonald’s. E possivelmente entendi tudo errado, mas sem dúvida foi uma obra formadora. Concluí que as ideias valem pouco enquanto não são postas em prática. Logo, me tornei um homem de ação. Fazer, fazer e fazer.

Coloco no mesmo patamar de obra formadora "O Cisne Negro", de Nassim Thaleb. Essa eu li um pouco antes de deixar as redações rumo às empresas e logo após me casar. O economista e filósofo, página a página, descontruía matematicamente minha visão cartesiana. Percebi que a sorte e o acaso tinham uma influência muito maior do que imaginamos. E mais, controlamos muito pouco do que acontece à nossa volta. Nada do que li desabonava minha fórmula (Trabalho duro + estudo – endividamento = sucesso). Mas ficou evidente que estava diante de um grande problema. Minha fórmula do sucesso, apesar de efetiva, não dava conta da complexidade do mundo à minha frente. Outro ponto importante: levei anos e toda uma infância e juventude para desenvolver uma fórmula. Portanto, precisaria encontrar um novo princípio de vida, mas não poderia esperar viver outros 30 anos para isso.

A ficha caiu enquanto lia a biografia "A Bola de Neve", sobre o megainvestidor Warren Buffett. Logo me identifiquei com Buffett. Assim como eu, ele havia começado a trabalhar cedo, era um apaixonado por jornais e seu empenho no trabalho e afinco em estudar eram notórios. Entretanto, enquanto eu acumulava merrecas, ele acumulava bilhões. E se ninguém pode trabalhar ou estudar bilhões de vezes mais que outra pessoa, onde estaria a diferença da fórmula de Buffett para a minha? Concluí que a resposta provavelmente é a tenacidade com que Buffett buscava copiar o investidor e professor Benjamin Grahan. Grahan foi uma lenda das finanças. Bateu o Mercado sucessivamente por décadas, superando todos os demais investidores. Buffett ainda jovem, tornou conhecer Grahan e se aproximar dele uma meta de vida. E assim o fez, se tornou um aluno, funcionário e discípulo fiel de Grahan. 

Na mesma época, me deparei com aquilo que acredito ser a chave para encontrar respostas como a que buscava para criar um novo princípio: o conceito de modelos mentais. Essa teoria foi popularizada por Charlie Munger, sócio de Buffett, também bilionário e uma lenda entre investidores do mundo todo. Em, seu livro Poor Charlie’s Almanack, ele diz:

“Adquirir conhecimento pode parecer uma tarefa assustadora. Há tanta coisa para saber e o tempo é curto. Felizmente, não temos que dominar tudo. Para obter o maior retorno para o nosso investimento, podemos estudar as grandes ideias das grandes disciplinas: física, biologia, psicologia, filosofia, literatura, sociologia, história e alguns outros. Nós chamamos essas grandes ideias de modelos mentais.

A estrutura de modelos mentais coloca-os em uma forma utilizável para analisar uma ampla variedade de situações e nos permite tomar decisões melhores. E quando grandes ideias de múltiplas disciplinas apontam para a mesma resposta, podemos começar a concluir que atingimos uma verdade importante.

Munger explica da seguinte maneira sua abordagem sobre a sabedoria em geral:

Bem, a primeira regra é que você não pode realmente saber nada se você apenas lembrar fatos isolados e tentar colocá-los em prática. Se os fatos não ficam juntos em uma estrutura de teoria, você não os tem em uma forma utilizável.

Você tem que ter modelos em sua cabeça. E você tem que arranjar sua experiência tanto recebida e direta como uma colcha de modelos. Você pode ter notado os estudantes que apenas tentam decorar e usar o que lembram do passado. Bem, eles falham na escola e na vida. Você tem que conectar a experiência nessa colcha de modelos em sua cabeça.

Quais são os modelos? Bem, a primeira regra é que você tem que ter vários modelos, porque se você tiver apenas um ou dois que você está usando, a natureza da psicologia humana é tal que você vai torturar a realidade para que ela se encaixe em seus modelos, ou pelo menos até você pensar que se encaixa...

É como o velho ditado, "Para o homem com apenas um martelo, cada problema parece um prego." E, claro, é assim que o quiroprático vai praticando medicina. Mas isso é uma maneira perfeitamente desastrosa de pensar e uma maneira perfeitamente desastrosa de operar no mundo. Então você tem que ter vários modelos.

E os modelos têm que vir de disciplinas múltiplas porque toda a sabedoria do mundo não está para ser encontrada em um departamento acadêmico pequeno. É por isso que os professores de poesia, em geral, são tão imprudentes no sentido mundano. Eles não têm modelos suficientes em suas cabeças. Então você tem que ter modelos em uma série justa de disciplinas.

Você pode dizer: "Meu Deus, isso já está ficando muito difícil." Mas, felizmente, não é tão difícil, porque 80 ou 90 modelos importantes serão suficientes para entregar cerca de 90% do que é necessário para fazer de você uma pessoa mais sábia no mundo. E, desses modelos, apenas um punhado carrega a maior parte do peso.

É curioso. Desde a infância nos ensinam que copiar é feio e que o original é superior à cópia. Assim, a sensação é que cada tarefa precisa começar do zero para “ter valor”. Mas acredite, copiar é o modo mais eficaz de se buscar novos princípios de vida. Ao invés de criar modelos do zero, é mais fácil usar aqueles que já se encontram à nossa volta. E mais, um único modelo em um universo cada vez mais complexo não funciona. É importante possuir diversos modelos. Hoje percebo que a minha fórmula de sucesso é extremamente efetiva, mas está longe de ser uma solução para todos os problemas.

Pode parecer óbvio, mas não é natural para nós humanos pensarmos deste modo. Sem o treinamento certo, seu cérebro toma a outra abordagem, que é dizer: “Que modelos eu já sei e amo, e como posso aplicá-los aqui?” A analogia de Munger para isso é o homem com um martelo, a quem tudo se parece um pouco com um prego. Esse pensamento de mente estreita nos parece inteiramente natural, mas leva a muitos julgamentos errados.

E a verdade é que as boas ideias são tão perigosas quanto as más. O mentor de Warren Buffett, Ben Graham, descrevia a situação assim: “Você pode entrar em mais problemas com uma boa ideia do que uma má ideia, porque você esquece que a boa ideia tem limites”.

E qual é o caminho para se ter mais modelos mentais e evitar as limitações das boas ideias? Recomento a leitura do blog Farnam Street, de Shane Parrish. Abaixo, a resposta que ele dá ao problema:

O melhor antídoto para este tipo de limitação é adicionar mais cores à sua paleta mental, para expandir seu repertório de ideias, torná-los vívidos e disponíveis, e ver sua mente crescer. Você vai saber que está no caminho certo quando as ideias começam a competir umas com as outras. No início, isso é ligeiramente desconfortável. Uma ideia diz X e a outra ideia diz o reverso de X: como eu decido qual é melhor?

Este processo de deixar os modelos competirem e lutar por superioridade e maior fundamentação é chamado de pensar! É um pouco como aprender a andar ou andar de bicicleta. No começo você não pode acreditar em tudo o que deveria fazer de uma vez, mas eventualmente você se pergunta como sempre viveu sem isso.

Parrish disponibiliza ainda uma série de fontes e textos sobre modelos mentais. Neste vídeo, há uma animação sobre o conceito.

Castorp, nosso herói de "A Montanha Mágica", sofria por pensar demais. Mas sua infelicidade não veio da reflexão. O problema era pensar sempre a partir de um mesmo modelo em um mundo mudando tão rápido diante da guerra. Taleb também deixa evidente em O Cisne Negro como um mundo cada vez mais imprevisível exige modelos variáveis e uma capacidade de pensar cada vez mais flexível.

 Tive sorte em descobrir um modelo mental relativamente cedo e usá-lo ao máximo. Por outro lado, percebo que perdi oportunidades ao não usar um leque mais diverso de modelos mentais em minhas decisões. Afinal, é mais fácil ajustar as engrenagens da vida com uma caixa de ferramentas mais diversa e robusta.

Se chegou até aqui, talvez já tenha percebido que a melhor maneira de abordar problemas complexos seja se perguntando: e se tudo que acredito estiver errado? Acredite, em diversas ocasiões, tudo que acreditamos realmente está errado. É por essa razão que os gênios nos parecem tão estranhos e deslocados no mundo. E antes que você se desespere, lembre-se: tudo na vida é apenas uma questão de reflexão até encontrar o modelo mental correto. Não saia batendo em todos os problemas como se fossem pregos.

Publico no LinkedIn e Medium textos relacionados a comunicação, marketing, tecnologia ou o encontro dessas disciplinas. Gostou do que leu? Pode me seguir nas redes sociais e compartilhar este conteúdo com suas conexões.

E aqui você encontra outros posts que escrevi:

Luiz Moraes

Corretor de Imoveis na Foco Consultoria Imobiliaria

7y

Guilherme, excelente texto. Nenhuma formula milagrosa além do bom e velho trabalho duro e dedicação. Lembro deste episodio, se não me engano as pessoas eram vigiadas por drones e se falassem com você, seriam marcadas também, bem cruel. Você apresenta também que temos de sempre rever nossos planos e estratégia e ir adaptando as novas circunstancias. Gostei muito.

Ariane Santos dos Silva

Analista de Sistemas Pleno no Hospital e Maternidade Santa Joana

7y

Guilherme adorei seu texto mas uma coisa chamou muito minha atenção o nome da sua Avó é o mesmo nome da minha primeira professora do Jardim da infância. Ela era conhecida como Doba "Ero" e era professora em uma escola na cidade lider Itaquera. Será que minha professora era a sua Avó?

Leandro Vieira Silva

Gerente de Operações na Bram Offshore

7y

Guilherme, seu texto foi inspirador, valeu!! continue escrevendo!!!

José Aparecido .

Sales Coordinator l Sales Supervisor I Sales Manager I Trade Marketing

7y

Cara! que matéria, me vi nesse texto. Parabéns.

Dalva Lopes

Psychologist | Independent Human Resources and Sustainability Professional

7y

Perfeito!!! 👏🏼👏🏼👏🏼

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