Cultura

Governo Trump traz romances distópicos de volta à lista de mais vendidos

Governo Trump traz romances distópicos de volta à lista de mais vendidos

Americanos traçam paralelos entre distopias como 1984 e Admirável mundo novo e a plataforma política de Donald Trump

RUAN DE SOUSA GABRIEL
20/02/2017 - 14h04 - Atualizado 20/02/2017 15h03
Trump_Livros (Foto: Montagem de Daniel Graf sobre imagens de Getty Images e Thinkstock)

Durante a corrida eleitoral, Donald Trump prometeu que, se eleito presidente, seria “o maior criador de empregos que Deus já fez”. Trump não especificou se implementaria uma política de criação de empregos voltada a editorias e livrarias, mas é fato que seu governo ajudou a alavancar a venda de livros que estão longe de ser lançamentos. Os motivos, porém, não são dos melhores. A ascensão de um político populista com viés autoritário incentivou a procura por romances distópicos e obras que explicam a dinâmica do fascismo.

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Confira alguns dos livros que os americanos andam consultando como se fossem oráculos:

complô contra a américa (Foto: época)


 

“De hoje em diante, uma nova visão governará nossa nação. De hoje em diante, vai ser a América em primeiro lugar, a América em primeiro lugar”, discursou Donald Trump em sua posse como o 45º presidente americano, em 20 de janeiro. Essa visão, “a América em primeiro lugar”, não é nada nova. “America first” era o slogan de Charles Lindbergh (1902-1974), um aviador simpático ao nazismo que cogitou uma candidatura à Presidência pelo Partido Republicano – o partido de Trump – às vésperas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seu discurso racista e contrário à intervenção dos Estados Unidos em conflitos militares cativou as alas mais radicais do Partido Republicano. Mas, ao contrário do que se deu com Trump, as ambições políticas de Lindbergh naufragaram graças a seu palavrório preconceituoso, e ele se autoexilou na Europa, onde se aproximou de Adolf Hitler. Franklin Delano Roosevelt, responsável pela guinada à esquerda do Partido Democrata, foi reeleito para um terceiro mandato.

Mas e se os americanos não tivessem resistido à sedução do autoritarismo e elegido Lindbergh? O romance Complô contra a América, publicado em 2004 pelo escritor americano de origem judaica Philip Roth, nasceu dessa pergunta. No livro, Lindbergh vence Roosevelt com 57% dos votos. O presidente assina um tratado de cooperação com a Alemanha e implementa uma política de segregação dos judeus. A proximidade de Trump com líderes autoritários, como o russo Vladimir Putin, e seus discursos coléricos contra muçulmanos e imigrantes mexicanos justificam as comparações com Lindbergh. 

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Philip Roth disse que a eleição de Trump é ainda mais surreal e inexplicável do que a ascensão fictícia de um notório nazista, como Lindbergh. “É mais fácil compreender a eleição de um presidente imaginário como Charles Lindbergh do que um presidente real como Donald Trump”, afirmou à revista The New Yorker. “Lindbergh, apesar de suas simpatias nazistas, era um grande herói da aviação, demonstrou tremenda coragem física e genialidade aeronáutica ao cruzar o Atlântico em 1927. Trump não passa de um vigarista.”

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1984 (Foto: divulgação)

Em 1949, quando o escritor britânico George Orwell (1903-1950) publicou 1984, um romance distópico sobre um Estado totalitário em que ninguém estava a salvo da vigilância do “Grande Irmão”, o “Big Brother”, as referências ao terror stalinista eram claras. O avanço da história, porém, permitiu que o romance servisse de metáfora para outros regimes políticos após o fim da União Soviética. Atualmente, há quem diga que os Estados Unidos de Donald Trump guardam terríveis semelhanças com Oceânia, o Estado autoritário de 1984. As comparações aumentaram depois de uma entrevista em que Kellyanne Conway, chefe de campanha e conselheira de Trump, concedeu à TV americana no dia 22 de janeiro, dois dias após a posse do novo presidente. Um dia antes, o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, afirmou que a posse de Trump tivera o maior público da história – o que não é verdade. Conway descreveu os dados incorretos divulgados por Spicer não como “erros factuais” ou “mentiras”, mas como “fatos alternativos”.

“Orwelliana!”, gritou a internet. O conceito elástico de verdade empunhado por Conway foi recebido como sinal de que uma “novafala” estaria sendo desenvolvida pelo governo Trump. A “novafala” é um idioma criado pelo governo autoritário de 1984 por meio da condensação e da remoção de algumas palavras, com o objetivo de restringir o pensamento e manipular a realidade. A campanha preconceituosa e demagógica de Trump ajudou a popularizar o conceito de “pós-verdade”, um adjetivo que “denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”, segundo a Oxford Dictionaries, que publica o prestigioso dicionário Oxford. Seria a “pós-verdade” um dos primeiros vocábulos de uma “novafala” desenvolvida pelos novos governos autoritários, como o de Trump?

Poucos dias após a posse de novo presidente americano, 1984 saltou para o topo da lista de mais vendidos da Amazon. A Penguin, que publica a edição em língua inglesa do romance, anunciou a impressão de 75 mil cópias do livro.

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o conto da aia (Foto: divulgação)


 

No dia 21 de janeiro, um dia após a posse de Donald Trump, milhares de mulheres tomaram as ruas de Washington para defender seus direitos civis e reprodutivos dos ataques do novo presidente, notório por seus discursos e comportamentos misóginos. Era sábado. Na segunda-feira, dia 23, Trump baixou um decreto que proíbe o uso de dinheiro público para financiar grupos que defendam o direito ao aborto no exterior. Na sexta-feira seguinte, dia 27, o vice-presidente, Mike Pence, participou de uma manifestação contra o aborto, a Marcha pela Vida. O temor de que o novo governo dificulte interrupções voluntárias da gravidez e que a retórica machista do presidente incentive a violência contra a mulher trouxe O conto da aia, romance da canadense Margaret Atwood publicado em 1985, de volta à lista de mais vendidos. O conto da aia se passa num futuro não muito distante, em que os Estados Unidos se transformaram numa ditadura teocrática baseada no rígido código moral dos puritanos, os protestantes calvinistas que colonizaram a região de Boston no século XVII.

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O conto da aia narra o cotidiano em Gilead, uma república onde não há mais jornais, revistas livros, filmes ou universidades. Não há mais advogados porque o direito de defesa deixou de existir. Fuzilamentos em praça pública são rotina. As mulheres não têm quaisquer direitos e são divididas em castas de acordo com seus papéis sociais. Offred, a narradora, é uma “aia”: o único propósito de sua vida é procriar. “Quando o O conto da aia foi publicado, disseram que o livro era forçado, mas eu fiz questão de não escrever nada que a humanidade não tivesse feito em algum lugar, em alguma época”, disse Atwood no início do mês, na Feira Internacional do Livro de Havana, em Cuba.

Em O conto da aia, Offred tenta fugir para o Canadá. Fora das páginas do romance distópico de Atwood, muitos americanos também ameaçaram cruzar a fronteira setentrional e se abrigar na terra de Justin Trudeau, o progressista e midiático primeiro-ministro canadense.

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origens do totalitarismo (Foto: divulgação)


 

Em 1941, a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt (1906-1975) desembarcou nos Estados Unidos fugindo das tropas nazistas que marchavam sobre a Europa. Uma década depois, ela publicou Origens do totalitarismo, um clássico da filosofia política que analisa como ideologias autoritárias, como o nazismo e o stalinismo, sufocaram as democracias liberais europeias no período entreguerras. Nos últimos meses, colunistas da imprensa americana têm consultado o livro de Arendt em busca de respostas para algumas perguntas: como Donald Trump conseguiu se eleger com um discurso tão reacionário? A América está à beira do fascismo?

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Arendt analisa vários fatores que contribuíram para a ascensão do fascismo nos anos 1930, como as cicatrizes da Primeira Guerra Mundial e as consequências da Grande Depressão no cotidiano das classes trabalhadoras. Aqueles anos também foram marcados pelo aumento do desprestígio dos partidos políticos próximos ao centro, incapazes de responder às demandas de seus eleitores, que se sentiam excluídos. As instituições democráticas perdiam legitimidade e aumentava o apoio a líderes simpáticos ao uso da força. “Enquanto o povo, em todas as grandes revoluções, luta por um sistema representativo, a ralé brada sempre pelo ‘homem forte’, pelo ‘grande líder’. Porque a ralé odeia a sociedade da qual é excluída e odeia o Parlamento onde não é representada”, escreveu Arendt. Nesse caldeirão de ressentimento começou a borbulhar o ódio contra os estrangeiros e as minorias – como os judeus – e os intelectuais cosmopolitas.

Todos esses elementos contribuíram para a eleição de Trump: empobrecimento das classes médias, oposição a intervenções militares, desconfiança dos políticos tradicionais, ódio aos imigrantes e às elites liberais. “Nunca antes nosso futuro foi mais imprevisível, nunca dependemos tanto de forças políticas que podem a qualquer instante fugir à regra do bom senso e do interesse próprio – forças que pareceriam insanas se fossem medidas pelos padrões dos séculos anteriores”, escreveu Arendt do prefácio de seu clássico assustadoramente atual.

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admirável mundo novo (Foto: divulgação)


 

Em 1932, o escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963) publicou Admirável mundo novo, um romance distópico que se passava em 2540, quando o avanço da tecnologia e a abundância material reduziriam os homens a uma massa ignorante e submissa a regime autoritários. “Com a recente eleição de Donald Trump à Presidência, os Estados Unidos parecem ter cumprido as previsões de Huxley com mais de 500 anos de antecedência”, afirmou a escritora russo-americana Nina Khrushcheva.

Khruscheva não foi a única intelectual a alertar sobre as perturbadoras semelhanças entre Admirável mundo novo e a nova ordem mundial de Trump. O escritor Andrew Postman assinou um artigo no jornal britânico The Guardian com o título: “Meu pai previu Trump em 1985 – não é Orwell, ele avisou, é Admirável mundo novo”. Em 1985, o pai de Andrew, o crítico cultural Neil Postman (1931-2003), publicou Amusing ourselves to death (Nos divertindo até a morte, em tradução livre), no qual argumentava que, ao contrário do que ocorrera na União Soviética, os Estados Unidos não caminhavam para um regime totalitário de tipo 1984 – o perigo, na verdade, era que os americanos copiassem o destino dos personagens de Huxley.

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Admirável mundo novo descreve uma sociedade consumista, segregada, sexualmente liberada, obcecada por entretenimento e amortecida pela “soma”, uma mistura de entorpecente e antidepressivo. Neil defendeu que essa era uma descrição bastante precisa dos Estados Unidos em meados dos anos 1980 e que o resultado desse arranjo social foi a eleição de Ronald Reagan, um ex-ator que trocou as comédias hollywoodianas pelos dramas de Washington. O que antes era farsa parece ter se repetido como tragédia com a eleição do midiático Trump, um ex-apresentador de TV com um vocabulário limitado e uma plataforma de governo que pouco tem de admirável – ou nova.








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