Rainhas mais próximas dos súditos

Sabrina Sato, rainha de bateria da Vila Isabel. Foto de Eduardo Hollanda

Escolas apostam em identificação e identidade no posto à frente dos ritmistas

Por Aydano André Motta | ODS 11 • Publicada em 25 de fevereiro de 2017 - 17:46 • Atualizada em 27 de fevereiro de 2017 - 12:58

Sabrina Sato, rainha de bateria da Vila Isabel. Foto de Eduardo Hollanda
Sabrina Sato, rainha de bateria da Vila Isabel. Foto de Eduardo Hollanda
Do interior de São Paulo, Sabrina Sato virou musa de bateria da Vila Isabel. (Foto de Eduardo Hollanda)

Penápolis, no interior de São Paulo, está a 905 quilômetros da Passarela do Samba, e Vila Formosa, na Zona Leste paulistana, a 429 quilômetros da Marquês de Sapucaí. Em comum, os dois endereços improváveis forneceram integrantes estreladas para a comunidade do samba carioca, ajudando a redefinir as noções de (como se diz hoje em dia) pertencimento e comunidade da festa. De lá, vieram respectivamente Sabrina Sato, rainha de bateria da Vila Isabel, e Camila Silva, ocupante do posto na Mocidade Independente de Padre Miguel.

Alienígenas no paticumbum? Sem chance – integradas à tribo do samba, arrebatam corações pela avenida e fora dela, para ensinar que o Carnaval pertence a quem quiser se chegar. Além disso, elas integram o time de rainhas que não nasceram geograficamente próximas de suas escolas, mas transformaram-se em “locais” por mérito e atitude. Novo desenho para o cargo que não conta ponto, mas motiva discussões viscerais no planeta da folia.

Praticamente acabou a era das aventureiras, que compravam o lugar à frente da bateria, apenas para passar  dando pinta pela avenida iluminada, sem qualquer identificação com a festa. Hoje, a quase totalidade das escolas do Grupo Especial tem, à frente de seus ritmistas, ícones de beleza que se empenham, ao longo do ano, na construção de relação intensa e apaixonada com os “súditos” ritmistas. (Muito) melhor assim.

Faço tudo pela Vila de coração. É minha escola, minha comunidade. No que eu puder ajudar, vou fazer sempre

Como Natal da Portela era paulista e Joãosinho Trinta maranhense, Sabrina Sato pode perfeitamente ser de Penápolis, procedência comprovada pelo forte sotaque da linda descendente de japoneses, rainha da Vila. De tão apaixonada, ela, que mora e trabalha em São Paulo, comprou um apartamento no Rio apenas para estar mais perto da azul e branco do bairro de Noel Rosa. O desembarque no Carnaval foi no Salgueiro, que abrigou a então ex-BBB (lembra?) como musa – na verdade, ela pediu para desfilar, encantada com a folia carioca desde criança.

“Quando surgiu o convite da Vila, lembrei dos sambas, de Noel, do Martinho”, relembra Sabrina, que estreou em 2011. “A própria Regina (Celi, presidenta do Salgueiro) me levou. Quando cheguei, comecei a chorar. O povo da Vila Isabel sabe ver o lado bom da vida”, constata. E ela mergulhou de cabeça. Estrela milionária da televisão, apresentou de graça o lançamento do enredo de 2013, patrocinado pela Basf, que acabou no título do Carnaval.

Para ela, está barato. “Faço tudo pela Vila de coração. É minha escola, minha comunidade. No que eu puder ajudar, vou fazer sempre”, garante ela, que paga a própria fantasia (algo em torno de R$ 30 mil), para aliviar a sempre endividada azul e branco. “Tenho condições, a escola merece e, sem o ônus da minha fantasia, ajuda a fazer a dos outros”, explica ela, que quase não falta aos ensaios de rua, no Boulevard 28 de Setembro, a rua com notas musicais impressas na calçada, em Vila Isabel. Fica ali, como todos os outros componentes, aproveitando cada minuto da festa despojada.

Não é o único lugar do bairro que Sabrina frequenta. Ela também vai ao Morro dos Macacos, berço da escola, e conta ser muito bem recebida. Da primeira vez, vários barracos abriram suas portas para lhe oferecer comida, na hospitalidade típica das favelas, que os ricos brasileiros não praticam. “Foi lindo, as pessoas diziam: ‘Vem pra cá, tem ar-condicionado”, recorda a rainha.

Em 2016, ela desfilou sem transmissão da televisão (a TV Globo, detentora da exclusividade na Sapucaí, ignora o início da festa), e, apesar de viver da imagem, tudo bem. “Agora que me toquei que não passou. Jamais deixaria de sair por isso. Tem de ficar com a escola onde ela estiveram nos momentos bons e ruins. O carinho que eu recebo não tem preço”, conclui ela, que não descuida das aulas de samba no pé com Dandara Oliveira, passista número 1 da Vila e um espetáculo de dançarina. “Só vai ficar no samba quem gostar de verdade. E eu amo demais”, derrete-se.

Juliana Alves, rainha de bateria da Unidos da Tijuca. Foto de Mauro Samagaio
Juliana Alves, nascida e criada na Tijuca, é a rainha de bateria da escola. (Foto de Mauro Samagaio)

Juliana Alves, a deslumbrante rainha da Unidos da Tijuca, professa a mesma fé – com o precioso acréscimo do engajamento na luta pela igualdade racial. Em 2017, ela completa cinco carnavais como soberana da Pura Cadência, a bateria da escola do Borel. Atriz de sucesso, revela que o posto na Sapucaí não acrescenta a sua carreira – muito ao contrário. “Meu maior objetivo profissional é ser vista sem rótulo. Às vezes, o cargo de rainha ou a ligação com atividade muito popular limita o olhar de algumas pessoas. Rotula um pouco a minha figura”, atesta. “Por mais que haja grande mídia em torno das rainhas, não soma no meu crescimento como atriz. A relação com o Carnaval é exclusivamente de amor e paixão, e não necessariamente agregadora pra minha carreira”.

Meu maior objetivo profissional é ser vista sem rótulo. Às vezes, o cargo de rainha ou a ligação com atividade muito popular limita o olhar de algumas pessoas. Rotula um pouco a minha figura

Mas tudo bem – quando o dilema se apresenta, ela, carioca da Tijuca (“E muito bairrista”, sublinha.), se agarra no que acredita. “Não vim ao mundo fazer parte da estatística, mas para mudá-la. Não vou deixar de vivenciar algo importante pra mim por causa do trabalho”. Aqui, entra a militância de Juliana, expressa no inegociável envolvimento com questões raciais e culturais. “É um norte, que aprendi em casa”, conta ela, que também desfilou no Salgueiro (outra escola do bairro), mas consolidou sua paixão antes, aos 15 anos, nos ensaios pelas ruas vizinhas à casa aonde cresceu.

Ela estreou na Tijuca como composição de carro, em 2001, e entendeu ali, numa emoção diferente, o sentimento de identificação e pertencimento àquela comunidade. “O nome é orgulho, o tempero a mais quando você é do lugar. Redobra um pouco a emoção, pela construção de identidade que vem com os anos”, analisa, que repetirá a apoteose de beleza na Passarela, na primeira noite da maratona de samba.

O sentimento prescinde de endereço físico. Mais famosa rainha da atualidade e uma das quatro personalidades mais importantes do Carnaval (ao lado de Neguinho da Beija-Flor, da porta-bandeira Selminha Sorriso e do carnavalesco Paulo Barros), Viviane Araujo serve de exemplo. Oriunda da Zona Oeste carioca, foi rainha na Mocidade Independente de Padre Miguel, e vagou por inúmeras escolas, como Beija-Flor, Mangueira, Unidos da Tijuca, Caprichosos de Pilares e Império Serrano. Chegou ao Salgueiro em 2008 e rapidamente alcançou o estrelato, como rainha de bateria.

De tão intensa, a adoração da tribo do samba por ela garantiu o título – e o mais importante, o prêmio de R$ 2 milhões – no reality show “A Fazenda”, da Record. A cada semana, uma mobilização corria as redes sociais, convocando torcedores e componentes de todas as escolas para garantir a sobrevivência da rainha. Foi assim até o final. A vitória pavimentou a carreira de atriz da sambista, hoje no ar em “Rock Story”, novela da 19h da Globo.

Camila Silva, rainha da bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel. Foto de Eduardo Hollanda
A paulistana Camila Silva é rainha da bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel. (Foto de Eduardo Hollanda)

A viagem apaixonante está no início para Camila Silva, mulata monumental que a Zona Leste paulistana exportou para o Carnaval carioca. Ela estreou em 2013, como rainha de bateria da Mocidade, e enfeitiçou a Sapucaí com impecável samba no pé, um tufão nos quadris e 1,80m de espetacular beleza negra.

Vou intensificar meu elo com a escola, porque sei da importância do posto. A torcida aqui é muito mais forte, não posso decepcioná-la

A imensa torcida verde e branco caiu de amores, mas trapalhadas políticas na escola acabaram por tirá-la do cargo. Nos dois desfiles seguintes, o equívoco Cláudia Leite abotelou-se à frente dos ritmistas, garantindo o Estandarte de Ouro de constrangimento carnavalesco, mas o suplício acabou – e Camila está de volta, nos braços do povo. Rainha da paulista Vai Vai há nove anos, ela  compreende a responsabilidade e busca a interação com os bambas cariocas. “Fui num pagode em Bangu, e adorei; também estou sempre nas feijoadas”, festeja. “Vou intensificar meu elo com a escola, porque sei da importância do posto. A torcida aqui é muito mais forte, não posso decepcioná-la”, acrescenta.

Casada, mãe de uma menina de 12 anos, Camila venceu rapidamente a xenofobia da rivalidade Rio-São Paulo. Seu sotaque típico dos nascidos no outro lado da Ponte Aérea está naturalizado em Padre Miguel, e a direção da escola dá sinais de que aprendeu a lição. “Achamos nossa rainha”, exulta o vice-presidente, Rodrigo Pacheco. Ela mantém-se concentrada – não falta aos ensaios da bateria e só quer garantir o carinho dos componentes. “Vou em empenhar porque entendo a importância disso para os sambistas. É nossa festa”, referenda.

Aos poucos, fui vivenciando e entendendo aquilo tudo, até me apaixonar pelo samba. Comecei a desfilar aos 12 anos e, com a Portela, tive a oportunidade de conhecer outros estados, fiz shows e eventos

E também de Bianca Monteiro, a nova rainha da supertradicional Portela, aposta da maior campeã do Carnaval numa cria da casa. A linda passista desfila há 16 anos na azul e branco, nasceu e mora em Madureira, bairro da escola. “Comecei a frequentar a quadra ainda no carrinho de bebê”, contou ela, ao “Meia Hora”. “Aos poucos, fui vivenciando e entendendo aquilo tudo, até me apaixonar pelo samba. Comecei a desfilar aos 12 anos e, com a Portela, tive a oportunidade de conhecer outros estados, fiz shows e eventos”, relata. No fim de 2016, surgiu o convite para reinar à frente da Tabajara do Samba. “Sempre fui uma passista da Portela. Sempre me fiz presente por amor ao meu pavilhão. Não sabia que um dia seria rainha, não estava programado. Só posso dizer que a escola reconheceu meus 16 anos de casa e me presenteou. Meu objetivo é retribuir este amor e confiança”.

Porque quem é soberana do samba faz assim.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *