“Este jogo joga com você”: Como o entretenimento digital pode afetar as pessoas

Você gosta de jogos de terror? Eu adoro. Mas quer levar um susto diferente de todos os outros? Então bote pra rodar o Silent Hill: Shattered Memories e depare se com este aviso prudencial na imagem ali em cima!

“Este jogo brinca com você como você brinca com ele”. Chega a dar calafrios, né? (Certeza que era a intenção desses espertinhos da Konami).

Mas será que é mesmo assim? Até que ponto um jogo eletrônico pode brincar com você? Dizendo de outra forma: será que games podem nos manipular, afetando nossa mente, personalidade ou comportamento no mundo real ?

A discussão sobre efeitos psicológicos quando se refere a entretenimento digital já foi mais intensa no início da internet. Especialmente nos primeiros anos da década de 2000. De lá pra cá as coisas mudaram: ficou ainda mais cool ser nerd (sim, já foi até xingamento), temos smartphones, redes sociais, Realidade Aumentada e Virtual barateadas. Discutir os efeitos psicológicos dos games parece ter se tornado coisa do passado. Contudo, a temática perdeu intensidade mas não validade. Professores, psicoterapeutas e responsáveis ainda se inquietam sobre a possibilidade dos games fazerem mal, ao passo que alguns se exaltam em elogios aos ganhos (supostamente) vindos do entretenimento digital.

Para tratar dessa temática tocarei em três assuntos recorrentes sobre como games podem afetar seus jogadores: violência, bem-estar interpessoal e inteligência.

1. Violência

Por “violência” aqui entendo mais que agressividade. É um tipo de agressividade voltada pra violar o espaço e integridade de si mesmo ou dos outros. É importante destacar isso porque jogos brincam muito com a agressividade e competitividade, mas se você parar para pensar isso não é violência. (Talvez de faz-de-conta…).

Falando em faz-de-conta, notou como desde sempre as tradicionais histórias infantis estão cheias de monstros, lutas, mutilações, homicídios e muito, muito, mas MUUUUUUIIIITTTTOOOO sangue? No  livro “Brincando de matar monstros” uma polêmica tese é desenvolvida a respeito disso: a de que a violência de faz-de-conta faz bem. Crianças gostam e precisam brincar de matar monstros, diz o autor, que em seguida explica que isso traz força de caráter e coisas assim. Depois é apresentada uma revisão de estudos sobre o incentivo da violência pela mídia moderna (que usa e abusa das histórias agressivas onde monstros e gente morre). Constata-se no livro que esses estudos não são nada conclusivos: uns dizem que sim, outros que não e outros talvez. Então, quando estudos apontam pra todas as direções na verdade não estão apontando pra nada, não é mesmo?

Violência de faz-de-conta faz as crianças e jovens ficarem mais violentos? Talvez. Vai muito do contexto de cada um. Ponto. Então nada de defender a fórmula simplista de que “Videogames geram violência“, beleza?

Tá, mas e quando a violência extrapola os limites da imaginação e fica real?

Um caso famoso disso: dois jovens que massacraram dezenas de pessoas a tiro em sua escola nos EUA, inspirados pelo game de tiro “Doom”, e tiveram sua história contada no documentário “Tiros em Columbine” (2002). Os dois curtiam, além de jogos de tiros (desses em que se mata muitos monstros com tiros na cabeça e se vê muito sangue), o filme Matrix e resolveram imitar uma cena, usando capas pretas e muitas armas pesadas para o massacre. Bom, ao menos foi isso que o noticiário disse… O que não disse é que os dois jovens eram tratados como párias no colégio, agredidos frequentemente pelos colegas, abusavam de substâncias, vieram de famílias desestruturadas e a cidade em que moravam era famosa por fabricar armas. Viu como o “joguinho de matar monstro” precisa ser analisado dentro de um contexto maior?

Ok, Alessandro, mas eles eram doidos ou ficaram doidos depois dos jogos?

Há uma vertente em que psicoterapeutas dizem algo como: “Doido mesmo só tá procurando uma janela pra se jogar“. Isso quer dizer que esquizofrênicos, psicóticos, surtados e afins que acabam se viciando em games violentos apenas usaram esse canal para expressar perturbações pré-existentes. Outras vertentes dizem que entretenimento digital pode instaurar transtornos como ansiedade, depressão e até mesmo estados dissociativos da realidade. Misture tudo isso, tempere a gosto e você teria criminosos saindo da fôrma.

O mais provável, e é o que eu aposto, é que ninguém sai matando gente na rua porque jogava muito Call of Duty. Casos de violência não ligados a problemas sociais, mas motivados por transtornos particulares, devem ser investigados a sério. E nessas investigações sempre se descobre várias determinantes bem mais consideráveis do que “Gostava de matar zumbis no Wii” como, abusos familiares, abuso de substâncias e transtornos psiquiátricos não tratados.

2. Solidão e sedentarismo

Sinceramente, acredito que a questão da solidão é bem mais importante, quando o assunto é o entretenimento digital, do que o da violência. Isso porque são raros os casos de violência real ligada de alguma forma a jogos eletrônicos, mas os casos de gente solitária, fragilizada, deprimida, fóbica, ansiosa e mesmo em surtos psicóticos na frente de uma tela são bem mais frequentes.

Você conhece ao menos uma pessoa que praticamente só se diverte na internet? Eu sim. Várias. Me refiro a alguém que quase não encontra os amigos, nem pratica esportes, nem jogos presenciais, não namora, só cultiva planos sobre o próprio PC que comprará… Triste, isso. Tudo para passar várias horas por dia envolvido com algum entretenimento digital. Essa solidão gasta na internet já é considerada uma patologia em vários países do mundo e até mesmo já se fala disso por aqui no Brasil.

Na China não é raro notícias de jovens morrendo durante sessões longuíssimas de jogos eletrônicos. Fisiologicamente a combinação de ansiedade acumulada, falta de alimentos e de água e ingestão de substâncias para ficar acordado (como café e energéticos) pode render um infarto ou derrame após 1 ou 2 dias seguidos de diversão digital. Principalmente se você já tinha um organismo debilitado pela depressão ou afins. Ninguém me tira da cabeça que se alguém chega a morrer jogando um RPG online qualquer é porque essa pessoa tinha uma propensão a vícios e estava severamente deprimida. Ou ambas as coisas.

Vício em joguinhos podem ficar tão fortes quanto em droga. Isso quer dizer que pessoas com propensão à dependência de substâncias também são mais frágeis ao vício eletrônico. E obter prazer apenas na frente de uma tela tem toda cara de depressão, seja se você estiver jogando alguma coisa, seja se você  estiver zanzando por redes sociais. Em suma: vivemos em épocas de crescente solidão e desagregação social. É facílimo, nesse contexto, ficar deprimido e acabar se viciando em alguma coisa na ilusão de que tudo vai melhorar. Tome cuidado!

Então se você passa tempo demais nos games experimente sair por aí, chamar alguém para passear (sem smartphone, hein), conversar mais com pessoas, praticar algum esporte, jogar War com sua turma, enfim, variar o cardápio e obter alguma diversão com outro meio que não apenas um game.

 3. Inteligência

Hora de falar de algo supostamente bom que os games trazem, já que até agora só falamos de violência, depressão e outros males, né?

Mas já adianto: sou bem cético com essa história de que jogar Tetris te deixará mais esperto, ou que Counter Strike forma bons estrategistas per si. Pra mim dizer essas coisas é uma forma de propaganda velada da indústria. Uma propaganda disfarçada, mas ainda uma propaganda.

 


Você já ouviu falar no Efeito Flynn? Em resumo, ele postula que uma sociedade imersa em mídias televisivas e, agora, digitais, estimula a inteligência. As pessoas até estariam ficando mais espertas e intelectualmente habilidosas por causa do ambiente midiatizado cheio de tecnologias de informação. Isso seria até atestável por aumentos contínuos na média do QI da população! Nesse cenário os jogos estariam colaborando, e muito, para nos tornarmos inteligentinhos.

Ok, mas essa é a versão propagandística do Efeito Flynn. O prório Flynn aparece neste vídeo dizendo que não é bem assim… A bem da verdade, jogos sempre foram usados para estimular o intelecto. Na Idade Média os jovens nobres eram disciplinados no xadrez para aprenderem os rudimentos da estratégia militar. Mas os jogos digitais seriam um plus inédito, por serem mais interativos e conectados em redes sociais. Eu duvido.

Alessandro, mas por que você não acredita que jogos nos deixam inteligente?

Falemos um pouquinho sobre essa tal de “inteligência”… Há vários modelos pra explicá-la. Aqui destaco dois pares bem conhecidos:

a) “Fator G” vs “inteligências múltiplas – Esse “G” significa “geral“. Diz respeito a uma inteligência sem forma específica, que explicaria porque há pessoas globalmente mais inteligentes que outras. Melhores em tudo mesmo. Nesse sentido faz dizer que fulano é mais inteligente que beltrano porque ele tem melhor raciocínio, mais velocidade de pensamento ou algo assim. Já as inteligências múltiplas diferem ao estipular que há tipos qualitativamente distintos de inteligência. Nesse segundo modelo “inteligência” vira uma espécie de meta-competência: a inteligência musical, por exemplo, seria a competência em adquirir competências musicais.

b) “Inteligência cristalizada” & “Inteligência fluída – A cristalizada seria o fruto de seus aprendizados, seu vocabulário e repertório mais ou menos fixado de habilidades, conhecimentos. A inteligência fluída gere dinamismo: seria resolver problemas sem experiência prévia, mas por intuição ou insight. Quando você dirige um carro certamente você depende muito de sua “inteligência cristalizada” para saber para onde ir e muito da sua “inteligência fluída” para emitir comandos velozes e precisos no volante, pedais e no câmbio de marcha.

O que me parece mais provável é que as pessoas não ficam globalmente mais inteligentes por causa dos games. Elas ficam mais especializadas em alguns tipos de inteligências. Também podem melhorar a fluidez de foco ou algo assim, mas não são garantia de mais bagagem cultural ou sabedoria pra vida. Os games funcionam como treinamento para algumas habilidades cognitivas, como rapidez de raciocínio, visão periférica, pensamento lógico e planejamento. Essas coisas podem até melhorar suas notas na escola ou te deixar mais esperto no trabalho. Mas inteligência é bem mais que raciocínio abstrato. Inteligencia também envolve habilidades sensório-motoras, autocontrole emocional, intuição, saber lidar com os outros, dentre outras coisas que os games em geral não afetam ou transformam (Alguns sim e será assim cada vez mais com a Realidade Virtual e a Aumentada). Então se você quer desenvolver seu potencial pra valer não pode contar apenas com games para isso.

Conclusões

Sim, jogos podem afetar nosso comportamento. Qualquer coisa que tenha um espaço destacado em nosso ambiente fará isso.

Jogos podem deixar alguém mais violento? Não duvido. Afinal tem gente com galão de gasolina por aí só procurando um isqueiro. Mas daí são casos clínicos. Com ou sem jogos.

Jogos podem fazer alguém ficar anti-social e deprimido? A modernidade como um todo faz isso, já. No entanto, jogos podem até ajudar a conhecer pessoas.

Jogos melhoram as pessoas deixando-as mais inteligentes? Não. Mais especializadas e só. Podem vir coisas boas daí. Podem vir coisas ruins também.

 

 

Alessandro Vieira dos Reis

Alessandro Vieira dos Reis (Redator) – É bacharel em Psicologia e mestre em Design de Interação. Atua como analista de gamification e game designer no DOT digital group em Florianópolis.

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