Usabilidade de games ou “Ei, como deixo a interface legal?”

Neste artigo, e nos subsequentes sobre esse tema, tentarei responder a seguinte questão: “Como projetar melhores interfaces para games?”. Para tal, começo com breves explicações de o que são interface, usabilidade de games e o que isso tem a ver com criar jogos divertidos. Este artigo não é nem de longe uma enciclopédia sobre o assunto: encare-o como um ponto de partida baseado na minha experiência como Game Designer com mestrado em Design de Interfaces.

Games divertidos precisam ser fáceis de usar (Quase todos)

Imagine que você viu esse vídeo aí embaixo no YouTube, clicou, assistiu e achou o game divertido. 

Agora imagine que você acabou de baixar o game Slither.io para jogar no seu smartphone.

Suas primeiras partidas foram tranquilas: pega a esfera de energia, desvia das outras minhocas, esquiva, foge, ataca e PUM!, você morre. “Mas ei!”, você diz em voz. Continua jogando. Melhorando, melhorando, pegou a esfera, foi esquivar e .. “De novo? Por que eu morri? Não desviei do inimigo?”. Desviou. Quer dizer, você emitiu o comando correto para desviar quando precisou desviar. Mas se embananou porque os botões eram perto demais e seu polegar grande demais pra tela. Já viu, né? Tava tão divertido o jogo, mas um problema de usabilidade te deixou p*** e você o deletou e baixou o análogo que o GooglePlay recomendou. Esse sim tinha uma interface melhor.

Meu ponto é o seguinte: quase todos os jogos precisam ser fáceis de usar. Não estou falando do desafio implícito na mecânica do jogo. Estou falando que precisa ser tranquilo para emitir comandos (em geral com toques de dedos em telas, cliques de mouse ou apertar de botões) para obter as consequências desejadas desses comandos. Deve ser fácil aprender a usar a interface (Diz-se que ela deve ter uma boa “curva de aprendizagem”). Para isso, a interface de um game precisa ser:

  1. eficaz (gerar os resultados desejados);
  2. eficiente (com um menor esforço em termos de comandos);
  3. de qualidade (seguir padrões consistentes e compreensíveis).

OBS: Mas lembra que eu disse que nem todo jogo precisa ser uma interface fácil? Então… Imagine um simulador de submarino russo da II Guerra. Se ele quer ser mesmo realista, então a interface in game e a off game podem ser complicadas a vontade…

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Interface de um simulador de submarino. Não acredita? Clique aqui.

Mas para a maioria dos games, acredite, você terá que projetar interfaces eficazes, eficientes e seguindo padrões de qualidade. Isso significa: de boa usabilidade.

 

O que é usabilidade de games, mesmo?

Quando se fala de produtos físicos como móveis, veículos e salas inteiras a palavra de ordem é Ergonomia, que cuida do ajuste de ambiente e objetos físicos para uso humano. Mas se o ambiente ou objeto é virtual entra em cena a Usabilidade, que pode ser vista como uma filha da Ergonomia que resolveu brincar apenas com entes digitais em telas (pra ser mais preciso, é uma filha da Ergonomia Cognitiva). Ou, melhor dizendo, com interfaces digitais (porque é disso que se ocupa a grande maioria do trabalho em Usabilidade). Uma interface é como uma camada intermediária entre a pessoa que usa e o produto digital que será usado. Dizendo de outra forma: você só interage com o game intermediado pela interface dele. Ela é o meio de campo entre o ser humano e a tecnologia.

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OBS: Para ser mais específico, interface
digitais do tipo gráfico e do sub-tipo WIMP.


Diz-se que um software, ou um game, tem
boa usabilidade quando o usuário consegue atingir seus objetivos (isto é, se divertir) sem grande esforço de comandos, a não ser os que fazem parte da mecânica mesmo.

Para entender a questão do esforço de comandos, pense no Whatsapp. Se você abre o Whatsapp e com apenas 2 comandos ligeiros acha a pessoa com quem queria falar, então o Whatsapp tem uma interface bastante usável.

Analogamente, se você está jogando League of Legends e, após devida aprendizagem (bastante motivada pela diversão do jogo), consegue fazer o que quer a partir dessa interface (imagem abaixo) então ela é usável. Pode ser um pouco difícil de aprender, mas se você é um tipo de jogador motivado para o tipo de diversão que LoL oferece, acatará essa dificuldade e acabará aprendendo e vendo que está se habituando com a interface. Isso remete à questão que para gamers, mais hardcore, boa usabilidade costuma ter menos valor que para casual gamers.

 

 


Mas será que a interface do League of Legends tem boa usabilidade mesmo? Olha isso aí em cima!  Será que ela não poderia ser mais eficiente e tornar a vida dos novatos mais tranquila? Ok, e quem disse que os designers queriam facilitar pros newbies? Um caso de menor usabilidade pode até funcionar como tática para agradar e selecionar público-alvo.

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Criando o jogo usável desde o início

Normalmente se fala de testes de usabilidade logo de cara. Mas esses testes são úteis em momentos de prototipação (seja ainda no papel ou sejam protótipos digitais mais avançados) ou então para corrigir falhas de interfaces já existentes. Por isso prefiro começar falando do momento de concepção das interfaces em um game.

A melhor forma que achei para conceber interface foi estudando Fenomenologia (um campo da Filosofia interessado em como a consciência emerge da interação do corpo com as coisas do mundo). O insight que tive a partir da Fenomenologia para projetar interfaces foi o da “bolha sensório-motora” (nome que dei).

Imagine-se no centro de uma bolha de vácuo. Não tem nada ali, só você. Você vê seu corpo em 1a pessoa. Um objeto aparece. Uma tela gigante onde você vê alguém jogando o game Slither.io, digamos.

O se segue daí em diante é bem explicado pelo GOMS model. Item por item:

1 – Goals – Sua intuição lhe diz o que tem que fazer no jogo. Isto é, qual o objetivo dele e as principais regras (itens de Mecânica);

2 – Operators – Você sabe o que precisa fazer com as mãos, o que precisa ver, tocar, sentir, como pode e como não pode manusear o smartphone. Agora que sabe o que tem que fazer, a tela some e aparece um smartphone similar ao que viu antes. Você sabe que tem que tocá-lo com as mãos e emitir comandos com os dedos de tal e tal forma;

3 – Model– Alguns modelos de procedimentos estão bem estabelecidos para você. Por exemplo, para controlar o sentido em que a minhoca se desloca você usa o polegar direito em correspondência motora;

4 – Selection – Há diversas posturas corporais para jogar e formas de emitir comandos no smartphone (com a mão direita e a esquerda). E você já selecionou aquelas que cabem melhor para você no momento. Pode jogar em pé, mas prefere se sentar numa postura confortável para a coluna.

 

Como se avalia a interface?

Vamos supor que você não teve a oportunidade de conceber a interface já bastante usável desde o início do projeto e agora precisa melhorá-la. Daí isso costuma ser feito na fase de prototipação.

As formas mais populares de avaliação de usabilidade são a inspeção heurística e o teste  com usuários. Na primeira é você (e mais uns 2 ou 3 colegas com algum preparo colaborando), um checklist de itens a verificar e também a sua capacidade de observação. Na segunda, que se assemelha a um experimento científico (mas não é!), você deixa uma ou mais pessoas usando o produto digital, observa o que acontece, faz perguntas oportunas, pede para fazerem tal e tal coisa com o produto, e por aí vai.

Serei bem honesto. A maioria das empresas de games não faz testes de usabilidade. Eles podem ficar caros, demorados, custosos de uma maneira geral. Não pense que sou contra os testes. Fiz vários e podem ser muito úteis (Especialmente quando o produto está em versão alfa ou beta de testes). Mas ter um bom protocolo para inspeção heurística e saber usá-lo desde a fase de concepção da interface, já salva a pátria. Vai por mim! Controle de qualidade deve incluir interface e desde a concepção do jogo, sim.

Dito isso, aí vai uma sugestão de protocolo de heurísticas de usabilidade para games. O modelo GOMS explica a experiência sensório-motora de alguém que vai usar seu jogo. A partir dele emergem alguns princípios para garantir uma interface de bom uso. Gosto muito das diretrizes estipuladas por Donald Norman, o papa do Design de Interfaces:

 

Critério

Como se aplica

Visibilidade Tudo precisa estar explícito na tela. Me refiro a toda informação que o jogador precisa ter para tomar decisões. Se for importante, no centro ou piscando ou brilhado. Mas trate de tornar tudo que for relevante também fácil de achar na interface.
Feedbacks Isso é vital. Diria que a falta de feedbacks é a falha mais comum que sempre achei em testes de usabilidade. Quando o jogador faz algo precisa ter sinais claros de que seus comandos tiveram, ou não, a consequência desejada. Fora isso, o jogo precisa dar feedback do que está acontecendo. Se seu personagem está prestes a morrer a tela pode piscar em vermelho-sangue, p.e.
Affordances Esse tópico é complexo. Mas ajuda se você pensar em um affordance como um estímulo que deve funcionar como chamariz induzindo o jogador a fazer algo. Uma boa interface tem affordances para tudo. Por exemplo, assim como uma maçaneta parece convidar uma mão para ser pressionada, os botões da interface do jogo também precisam ter um apelo de uso.
Mapeamento Representações de cenários e também de telas de navegação do jogo. Especialmente úteis quando…
Restrições Tem tudo: é affordance. Às vezes você precisa dispor algo no jogo de modo a travar o jogador, isto é, impossibilitar algumas das ações. Pedras indestrutíveis no meio do caminho que exigem que você dê a volta são um bom exemplo de recurso de Level Design.

Consistência

A interface precisa funcionar por padrões que se repetem durante o jogo. Me refiro a quadros, cores, sons, efeitos visuais e tudo mais. Essas coisas precisam passar um senso de unidade não importa em que cenário ou fase você esteja para que o jogador não se confunda.

Na parte 2 desta série retomarei o quadro acima, explicando como usar esses conceitos na hora de conceber ou avaliar interfaces de jogos.

Este artigo já está longo demais.  Em breve rola a continuação dele, na qual tratarei dos seguintes assuntos:

  • Um passo além da usabilidade: avaliar a User Experience;
  • Usabilidade em mobile games;
  • Novos desafios tech para interfaces: realidade aumentada e virtual.

 

 

Alessandro Vieira dos Reis

Alessandro Vieira dos Reis (Redator) – É bacharel em Psicologia e mestre em Design de Interação. Atua como analista de gamification e game designer no DOT digital group em Florianópolis.

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