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Gro Brundtland: "Estimular a compra de carros a gasolina é um erro"

Gro Brundtland: "Estimular a compra de carros a gasolina é um erro"

A ex-primeira-ministra da Noruega e criadora do termo “desenvolvimento sustentável” critica o governo brasileiro e defende a tributação das emissões de gás carbônico

JOSÉ FUCS
28/10/2014 - 07h00 - Atualizado 28/10/2014 07h00
EMISSÕES LIVRES  Gro Brundtland, com uma muda de  jiboia-verde,  em São Paulo.  “O Brasil não apoia um acordo global sobre  o clima”          (Foto: Leticia Moreira/ EPOCA)

A médica norueguesa Gro Brundtland, de 75 anos, é uma das mais respeitadas autoridades em meio ambiente e saúde pública do mundo. Ex-primeira-ministra da Noruega, ex-presidente da Comissão sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas e ex-diretora-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), ela foi a criadora do termo “desenvolvimento sustentável”, nos anos 1980. No final de setembro, ao passar por São Paulo para dar uma palestra sobre o tema – a convite do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso –, Brundtland falou a ÉPOCA. Na entrevista, defendeu a tributação das emissões de gás carbônico, para conter o aquecimento global, e criticou a política brasileira de estímulo à compra de carros a gasolina.

ÉPOCA – Nos anos 1980, quando pouco se fazia no mundo em defesa do meio ambiente, a senhora criou o termo “desenvolvimento sustentável”. Hoje, 30 anos depois, a situação mudou muito?
Gro Brundtland –
Sim, houve mudanças. As pessoas, agora, estão mais alertas. O mundo inteiro discute o desenvolvimento sustentável. Foram criadas diversas instituições internacionais. As universidades e organizações não governamentais (ONGs) entenderam a importância do tema. Muitos países adotaram medidas para enfrentar o problema e se deram conta de que os congestionamentos de veículos não podem continuar jogando combustíveis fósseis e fumaça no ar. Isso é danoso à saúde e ao clima. Só que as mudanças têm sido muito lentas. Hoje, mais e mais pessoas percebem que as mudanças climáticas e a deterioração do meio ambiente chegaram a um ponto crítico.

ÉPOCA – Na prática, o que foi feito nas últimas décadas contra a degradação do meio ambiente e o aquecimento global?
Brundtland –
Em 1987, quando a Comissão sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas divulgou o relatório Nosso futuro comum, que propunha medidas para o crescimento sustentável, muito dióxido de enxofre (um gás altamente tóxico usado na produção de refrigeradores) ainda era jogado no ar. Na Europa, fábricas com grandes chaminés lançavam diversos gases contendo dióxido de enxofre, que vem da queima de óleo e carvão. Isso criava acidez nos lagos, corroía metais e até o concreto dos edifícios. Dava para ver o estrago na natureza e nas obras humanas. No final da década de 1980, conseguimos fazer um acordo para reduzir em 30% essas emissões. Foi uma luta dura.

ÉPOCA – De 0 a 10, em que pé a senhora acredita que estamos hoje?
Brundtland –
Talvez, 5, talvez 4. Se nada mais acontecer, isso começará a cair de novo.

ÉPOCA – Em sua opinião, o que deve ser feito agora para que a situação não volte a piorar?
Brundtland –
Precisamos fechar um acordo global em Paris, no ano que vem. Em 2015, haverá uma conferência mundial sobre o tema, para reduzir as emissões de gás carbônico, a principal causa do aquecimento global, mas também de outros gases, como o metano, igualmente prejudiciais. Vários países, inclusive o Brasil, aumentaram as emissões de gás carbônico todos os anos. Isso não pode continuar. O Brasil tem de mudar. Os demais países também. Se não houver uma mudança, todos morreremos sufocados, e a natureza será destruída. 

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ÉPOCA – No Brasil, o governo reduziu o imposto sobre os carros para estimular o consumo durante a crise global. Milhões de veículos chegaram às ruas, e isso aumentou a emissão de gases tóxicos.
Brundtland –
Foi uma decisão ruim. O governo fez o oposto do que deveria ter feito. Comprar mais carros não é a coisa mais importante para o povo no Brasil. Ele deveria comprar outras coisas, ter saúde melhor, mais comida, apartamentos melhores, mais educação. Na Noruega, fizemos o contrário. Os carros movidos a gasolina ficaram mais caros. Criamos novos impostos, para limitar o número de carros nas ruas. As famílias devem ser desestimuladas a ter mais de um carro. Devem ser estimuladas a usar ônibus. Eles são mais rápidos, porque se deslocam em faixas exclusivas. Os ônibus ainda são movidos a diesel, mas trabalhamos para mudar isso. Alguns veículos já rodam a gás. Há alguns anos, zeramos também os impostos sobre os carros elétricos. Hoje, a Noruega tem o maior número de carros elétricos do mundo. 

ÉPOCA – Com a descoberta de novas reservas de petróleo no pré-sal, o Brasil tem se comportado como uma espécie de “novo rico” da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), e o governo não parece muito preocupado com esse problema.
Brundtland –
Isso não funcionará. Vocês têm de aumentar os impostos dos carros a gasolina e sobre as emissões de qualquer extração de petróleo. Desde 1999, temos impostos na Noruega sobre a emissão de gás carbônico na plataforma continental. Esse dinheiro vai para os cofres públicos e pode ser usado para investir em educação e infraestrutura, como a construção de ciclovias. A indústria petrolífera reclamou, mas agora faz o possível para reduzir as emissões, em vez de jogar gás carbônico de graça no ar.

"Se o aquecimento for de 4 graus na próxima década, não haverá mais água em São Paulo"

ÉPOCA – Nos últimos anos, o uso do etanol, considerado um combustível mais “limpo” que o petróleo, diminuiu muito no Brasil,  por falta de estímulos ao setor. Como a senhora vê essa questão?
Brundtland –
Me disseram que a falta de incentivos levou a uma redução do interesse pelo etanol. Se isso significa mais interesse em combustíveis fósseis e falta de limites para emissões de gás carbônico, é algo muito ruim. Há dez anos, o Brasil tinha muito orgulho do etanol. É uma pena que, agora, ele esteja em decadência.

ÉPOCA – A Noruega tem um fundo soberano para evitar que os dólares gerados pelo petróleo inundem a economia e gerem inflação. Como ele funciona e qual seu saldo hoje?
Brundtland –
Na Noruega,  todo o dinheiro de impostos incidentes sobre a produção de petróleo, 25% do PIB (Produto Interno Bruto), vai para o fundo soberano. Ele foi criado em 1990 e vem crescendo ano a ano. Hoje, já tem um saldo de quase US$ 1 trilhão. O ministro das Finanças ou o primeiro-ministro não podem passar a mão no dinheiro do fundo soberano e usá-lo para compensar uma redução tributária ou diminuir o deficit público. O governo e o Parlamento não podem usar mais que 2,5% a 3% do saldo do fundo soberano por ano. Ele é totalmente independente do orçamento do governo. Só os impostos sobre a emissão de gás carbônico pelas empresas petrolíferas vão para o orçamento do governo. Essa é a melhor solução. Temos hoje uma das plataformas continentais mais competitivas do mundo e, ao mesmo tempo, uma das melhores políticas ambientais e climáticas. Dessa forma, as futuras gerações também poderão receber parte dos benefícios do petróleo.

ÉPOCA – A senhora acredita que, ao reduzir o uso de combustíveis fósseis e as emissões de gás carbônico, a velocidade do aquecimento global diminuirá mesmo?
Brundtland –
Sim. Se fizermos isso, conseguiremos reduzir o aquecimento global a 2 graus célsius até 2030. Nos últimos anos, a temperatura já aumentou 0,7 grau. Isso não pode mais mudar. Não podemos mais reduzir o aquecimento antes de ele alçançar 2 graus. Mas, se continuar no ritmo atual, a temperatura deverá subir 4 graus, em vez de 2, até o final da próxima década. É uma questão dramática. Não estamos fazendo o que devemos para enfrentá-la. Com um aquecimento de 4 graus, não haverá água em São Paulo. As pessoas sofrerão. As ilhas ficarão submersas. Será terrível.

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ÉPOCA – Muitas empresas têm defendido a sustentabilidade como uma estratégia de marketing. O que a senhora pensa disso?
Brundtland –
Algumas empresas usam  mal o termo. Se você diz que segue os princípios da sustentabilidade, tem de provar o que diz. Não pode simplesmente falar isso e dar como fato consumado que as pessoas acreditarão em você. Tem de haver transparência. Temos de ter o direito de olhar não só os balanços, mas também o que as empresas fazem para ter eficiência energética. Elas tratam seus empregados justamente? Tudo isso tem a ver com uma empresa ambiental e socialmente responsável. Agora, conheço muitas empresas progressistas, abertas para ser avaliadas por terceiros e ONGs.

ÉPOCA – A senhora está otimista com os possíveis resultados da Conferência de Paris em 2015?
Brundtland –
Ainda há muitos países relutantes em assinar o acordo. Há muita resistência dos Estados Unidos. Não do presidente Barack Obama. Ele entende isso, mas não tem apoio do Congresso. Temos de encontrar uma forma inteligente para que ele possa assiná-lo, ainda que não seja o acordo que desejamos. O Brasil também não está entre os que apoiam o acordo. Resiste, complica as coisas, diz que deve ter o direito de se desenvolver sem interferências externas. A China mudou de posição e concordou em se comprometer com a meta de limitar em 2 graus o aquecimento global até 2030. Isso poderá facilitar o acordo. China e EUA são os dois maiores emissores. Juntos respondem por 40% das emissões globais. A China entendeu que as emissões afetam a saúde de todos e que precisa ter energia renovável, ir além da era do carvão e do combustível fóssil. 








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