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Cacá Diegues Cacá Diegues
Cacá Diegues Foto: O Globo

Um mundo melhor

A alternativa que o EI planeja impor ao mundo, pela qual seus fanáticos são capazes de matar inocentes em Paris ou explodir a si mesmos, é a da negação do direito à vida

O que está acontecendo com o mundo de hoje? Será que sempre foi desse jeito mesmo, e a gente é que não reparava? Não reparava porque havia menos gente no planeta, as comunidades eram mais distantes umas das outras, as informações não chegavam na velocidade que chegam agora.

Neste momento, habita o planeta mais gente do que a soma de todos os homens e mulheres nascidos desde cerca de 150 mil anos atrás, quando o homo sapiens resolveu equilibrar-se nas pernas traseiras. Mesmo nos séculos mais recentes, ninguém no Ocidente era capaz de tomar conhecimento imediato de qualquer desastre natural sucedido do outro lado do mundo (dizem que o céu laranja do “Grito” de Munch é uma reprodução do inexplicável resultado tardio de explosão vulcânica na Ilha de Krakatoa, no Oceano Índico). Hoje, qualquer criança, no mundo inteiro, sabe o que é uma tsunami porque viu seu registro imediato no filminho japonês que passou tanto na televisão .

Mas desastres e tragédias espalhados por aí não nos dizem respeito. Desligamos a televisão depois da informação e vamos dormir em paz, os acontecimentos existem apenas dentro do aparelho eletrônico e de lá não podem sair para nos incomodar. É só lá que eles acontecem.

Mesmo que a lama cubra e destrua, ali perto de onde moramos, a quinta bacia fluvial do país e acabe atolando nove quilômetros da costa capixaba, sempre podemos dizer que o recente terremoto na Índia ou a erupção de um vulcão no Pacífico foram mais chocantes do que o que aconteceu ao Rio Doce. Podemos, então, entender por que a presidente da República só se deu ao trabalho de sobrevoar a região arrasada oito dias depois da tragédia e ainda nos prometa serena a demência de que o rio enlameado será ainda melhor, daqui a mais um tempo.

Sempre cultivei a ideia de Claude Lévy-Strauss de que a Idade de Ouro da história é o tempo que nos foi dado, a cada um de nós, viver. Mas já não sei se, em nosso tempo, é de algum modo possível essa ilusão ou se devemos esquecer a megalomania do mestre francês. Talvez seja mesmo mais sensato chorar com razão e esperar não se sabe o quê.

O que aconteceu em Paris, na semana passada, não tem a cara de uma Idade de Ouro. Apesar de seus erros, o Ocidente fez conquistas fundamentais para o engrandecimento da humanidade. Uma delas, que nos custou milhares de anos para absorver, desde que a ela primeiro se referiram os gregos, é a do direito à individualidade, o direito à vida e à felicidade, o direito ao prazer, se com isso não prejudicarmos o próximo. Mesmo que nem sempre consigamos exercer esse direito, ele é um pleito básico de nosso modo de viver.

O arrogante desafio jihadista deu-se justamente nesse universo de curtição — um estádio de futebol, uma casa de shows, restaurantes e cafés. Os terroristas não atingiram um só edifício ou monumento de significado político. Não é com um regime que eles pretendem acabar, mas com um modo de viver, com a possibilidade de um mundo melhor.

Aceitar o desafio do Estado Islâmico apenas como um fenômeno de natureza política, no contexto dos confrontos internacionais, de uma simples defesa de um regime contra outro, é ignorar seu caráter medieval, levando à fogueira de seu ódio aqueles que não pensam como os que têm armas nas mãos. A alternativa destrutiva e sombria que o EI planeja impor ao mundo, pela qual seus fanáticos são capazes de tornar escravas as mulheres yazidi, matar inocentes em Paris ou explodir a si mesmos com regozijo e satisfação, é a da negação do direito à vida. Pura e simplesmente.

Nenhum ser superior, nenhum deus, seria capaz de inventar criaturas com a finalidade única de fazê-las sofrer por toda a sua existência, em troca de um paraíso garantido ou duvidoso, depois do delírio material. Isso não faz sentido.

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“Sei que não podemos mudar o mundo sozinhos, mas se cada um fizer um gesto de ajuda, seja material ou espiritual, podemos amenizar os sentimentos negativos”. Essas palavras são de minha amiga Scheila Passamani, que criou e coordena uma página no Facebook chamada Oceano de Amor. O movimento convoca as pessoas para que, todas as terças-feiras, às 22h, de onde quer que estejam, emanem durante cinco minutos, através de meditação, “sentimentos de paz, amor e união para transformar nosso planeta num lugar melhor de se viver, com fraternidade e respeito ao próximo”. Criada há apenas quatro semanas, Oceano de Amor já tem sete mil adesões. Se apenas 10% desse grupo estiverem conectados, serão 700 pessoas concentradas em mudar o mundo pela energia do pensamento. É mais ou menos como está em “Awake”, belo documentário em cartaz na cidade, sobre a vida e o pensamento do guru e pensador indiano Paramahansa Yogananda. Será que isso é o que nos resta?

Cacá Diegues é cineasta

carlosdiegues2015@gmail.com

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