Coluna
Adriana Carranca
Adriana Carranca Foto: Mônica Imbuzeiro / Agência O Globo

Feminismo de guerra

Ao cobrir o corpo, mulheres se sentem protegidas do assédio

De passagem pelos Emirados Árabes Unidos, conheci uma jovem da qual só pude ver os olhos, tendo o restante do corpo coberto pelo niqab. Eu a convidei para um café. Gostaria de ouvir sua versão sobre opressão feminina. Ela concordou, mas antes tinha uma pergunta a me fazer: “É verdade que as mulheres brasileiras e americanas fazem muitas plásticas?”. Sim, era verdade. O Brasil ocupa o segundo lugar no ranking de cirurgias plásticas, atrás apenas dos EUA. “Que horror! Isso é que é opressão feminina, você não acha?”. Eu não entendi. “Ter de mutilar seu corpo para ser aceita por um homem ou se exibir na praia? Eu jamais me submeteria a isso. Aqui não é preciso.”

Lembrei-me da passagem ao refletir sobre o feminismo, motivada pela campanha #AgoraÉQueSãoElas , em que mulheres tomaram o lugar de jornalistas e escritores homens na mídia durante uma semana. Não é o caso desta coluna, mas se o objetivo mais amplo era nos fazer refletir sobre os espaços ainda hoje não ocupados pelas mulheres, aqui está minha modesta contribuição.

A supersexualização do corpo feminino e o papel da mulher como objeto de prazer, contra o que o movimento feminista emergiu, eram também os motivos que aquela jovem me dera para se cobrir, desafiando o lugar-comum ocidental — o que enxergamos como instrumento de opressão a ela parecia libertador. Mas a origem de um e de outro pensamento é a mesma.

Onde se cobrir era uma opção, perguntei repetidas vezes a mulheres por que o faziam: “Porque me sinto protegida”, é a resposta mais comum. Mas do que tentam se proteger? Do assédio dos homens. O sujeito opressor, portanto, não é o véu, mas o homem que se acha no direito de assediá-las (lá ou aqui) se exibirem o corpo. Aqui ou lá, no Islã ou no cristianismo, as mulheres são responsabilizadas por instigar o pecado do homem, o que confere a eles uma espécie de licença divina para o crime sexual, caso se sintam atraídos por elas. São sempre elas que os “provocam”. Porque o corpo descoberto se torna objeto de prazer dos homens.

Isso está na base do entendimento tanto dos religiosos conservadores que obrigam as mulheres a se cobrir, por determinação legal ou para evitar a cobiça masculina, ou dos que tentam dificultar o atendimento às vítimas de violência sexual com a aprovação do PL 5069, de autoria de Eduardo Cunha. É o que priva as mulheres do direito de liberdade – de usar o véu ou não (sem ser punida por isso), de ir e vir sem ser vítima de abuso sexual no metrô, de ser criança sem sofrer assédio na Internet.

Foi esse pensamento que deu origem a toda a cultura do estupro, expressão do movimento feminista dos anos 1970 para tratar das crenças que legitimam a violência contra a mulher. É um pensamento global e se perpetua porque as decisões estão sendo tomadas por homens — no Congresso brasileiro, na maioria dos países ou nos organismos internacionais. Vinte anos após a Conferência de Pequim, onde os países acordaram ter ao menos 30% das posições de governo ocupadas por mulheres, apenas 27% deles o fizeram. Quinze anos depois de aprovada a resolução 193 da ONU que determina envolvê-las em negociações de paz, sua participação ainda é “simbólica”, segundo a organização, embora elas sejam igualmente (às vezes, em maior escala) vítimas das guerras.

Em pleno século XXI, o estupro é uma arma de guerra usada para humilhar os inimigos — porque suas companheiras, mães, irmãs são vistas como objetos deles. Para atingir os opositores, grupos armados as violentam.

Na República Democrática do Congo, que lidera o ranking macabro dos estupros, uma mulher é vítima a cada minuto e meio. Mas quando organizações femininas do Norte Kivu, palco da guerra, pediram para participar das negociações de paz, lhes foi dito que havia só dois lados do conflito: governo e rebeldes.

“É uma situação chocante. As guerras estão sendo feitas por todos esses homens, quando os organismos internacionais se reúnem, em Genebra ou na ONU só o que vemos nas mesas de negociações são homens em uniformes e blackties”, disse à coluna a jornalista francesa Annick Cojean, do “Le Monde”, que está no Brasil a convite da Aliança Francesa para um debate sobre a violência contra as mulheres em zonas de conflito. Ela é autora de “O Harém de Kadafi” (editora Versus), em que revela o sequestro sistemático de jovens líbias para servirem de escravas sexuais ao ditador. Mais recentemente, descortinou o estupro de mulheres nas prisões do regime de Bashar al-Assad.

“Todos só falam dos crimes do Estado Islâmico, e são horríveis, porque eles sequestram mulheres e as fazem escravas. Mas esse crime não está ocorrendo apenas para satisfazer os desejos de soldados, o que já seria terrível, mas de forma institucionalizada. É uma concepção de guerra, usada pelo regime de Assad para desmoralizar os rebeldes, porque elas são consideradas propriedades deles. E, quando isso ocorre, elas são comumente abandonadas depois, porque recebê-las de volta seria uma desonra para os homens. Elas são duplamente vítimas.”

A falta de representatividade feminina nos governos e organismos internacionais faz com que o problema se reproduza. “É chocante, realmente um desastre. Está provado pela ONU que quando as mulheres são envolvidas nas negociações de paz os resultados são melhores, porque elas trazem à mesa assuntos esquecidos pelos homens, e as famílias serão envolvidas no processo. Mas os homens simplesmente não querem dar espaço, não importa quão inteligente e preparada você seja.”

As mulheres reivindicaram para si as conquistas de igualdade e liberdade da Revolução Francesa, uma das sementes do movimento feminista, e pergunto a Annick se ela se considera uma feminista e o que isso significa hoje. “É claro que sou feminista! Fico muito chocada quando as mulheres não querem se colocar assim. Feminismo é humanismo. Não é algo apenas para as mulheres. Homens modernos deveriam ser feministas! Porque significa que você quer algo que deveria ser natural: igualdade entre homens e mulheres. Isso não quer dizer queimar o sutiã. Mas estar consciente de que essa desigualdade é injusta. E fazer o melhor para lutar contra ela em sua família, em seu ambiente, em sua comunidade, em seu jornal. E eu o faço muito pacificamente”, revela Annick. “Esta é talvez a única guerra que nunca matou ninguém.”

Por isso, a coluna de hoje é dedicado a elas. Que ocupem os seus, os nossos espaços.

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