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A batalha dos remédios

Corrida para cura do ébola acordou indústria que lida com fortunas colossais.
José Carlos Marques 2 de Novembro de 2014 às 14:22
Ébola já matou cinco mil pessoas e ainda não há tratamentos eficazes
Ébola já matou cinco mil pessoas e ainda não há tratamentos eficazes FOTO: D.R.

A epidemia de ébola ultrapassou esta semana a marca das cinco mil vítimas mortais, mas os sinais que chegam de África são contraditórios. Dois países, Senegal e Nigéria, foram declarados pela Organização Mundial de Saúde como estando livres do vírus; na Libéria, um dos países mais afetados, o número de vítimas e de novas infeções detetadas regrediu ligeiramente; na Serra Leoa, continuam a aumentar os casos de novas infeções e mortes.

No terreno, médicos de todo o Mundo dão o seu melhor para salvar os pacientes, mas deparam-se com duas dificuldades: as péssimas  condições para montar centros de tratamento adequados e a falta de medicamentos específicos para tratar a doença.

Ambos os problemas estão a mobilizar os países ocidentais, até porque, na Europa e nos EUA, o aparecimento de casos de infeção deixou as autoridades e a opinião pública em alerta. A corrida pela descoberta de uma vacina e de tratamentos eficazes disparou e já há empresas farmacêuticas prestes a começar ensaios clínicos em humanos.

Não é apenas a vontade de salvar vidas que estimula esta verdadeira corrida. Empresas como a canadiana Tekmira, a britânica Glaxo­SmithKline, a japonesa Fujifilm, e as americanas Mapp bio, Chimerix, Johnson & Johnson e Newline Genetics disputam a oportunidade de serem as primeiras a patentear vacinas ou medicamentos eficazes.

As ações das companhias vão flutuando na bolsa ao sabor das notícias – tiveram grande valorização em setembro, quando se anunciaram estudos clínicos, mas desvalorizaram quando se percebeu que só em meados de 2015 poderão acontecer os primeiros testes em África. Mais estável tem sido o crescimento em bolsa das empresas que fabricam material protetor para as equipas médicas. A Hazmat, que fabrica os fatos e os capacetes que fazem os médicos parecerem astronautas viu as ações valorizarem-se em 16 por cento num só dia.

INVESTIGAÇÃO ACELERADA

Como explica à ‘Domingo’ um responsável da Fundação Bill e Melinda Gates, que tem investido milhões no apoio à investigação do vírus do ébola: "Não haverá uma ‘bala mágica’ para resolver a atual crise do ébola, por isso estamos a investir em áreas que podem acelerar o desenvolvimento de um vasto leque de produtos." Um dos exemplos é o soro Zmapp, que chegou a ser administrado a dois médicos americanos (que se salvaram) e a um missionário espanhol (que faleceu).

De­senvolvido em folhas de tabaco, o soro combina dois cocktails de antibióticos mas não foi possível provar a sua eficácia. O stock disponível acabou e estima-se que só no início de 2015 poderá haver novas doses. A melhor hipóteses de salvar o doente é mantê-lo hidratado e recorrer a antibióticos já conhecidos para estimular o organismo a desenvolver anticorpos contra uma doença que matou cerca de metade dos infetados.

Outra terapia aplicada, que terá salvo a vida da enfermeira espanhola Teresa Romero, é aproveitar os anticorpos que os sobreviventes geraram no organismo e replicá-los para usar noutros pacientes. Gigantes da indústria como a  GlaxoSmithKline e a Johnson & Johnson, ou a mais pequena Newline Genetics – empresa americana que está a desenvolver uma vacina criada por um instituto público do Canadá – prometem vacinas para breve, e os resultados dos testes com primatas são promissores.

A investigação mais avançada será a da empresa americana Johnson & Johnson e é um caso elucidativo de como funciona a indústria. A nova vacina – que estará disponível para ser administrada em maio de 2015, foi em parte desenvolvida por uma farmacêutica dinamarquesa, a Bavarian Nordic. A J&J percebeu o potencial da vacina desenvolvida pela Bavarian e injetou cerca de 200 milhões de dólares no desenvolvimento da pesquisa, ao mesmo tempo que comprava ações da companhia.

Em poucos dias, a Bavarian teve uma valorização de 24% em bolsa. Outro gigante do mercado, a Pfizer (criadora do famoso Viagra), ofereceu as suas capacidades para produzir a vacina em larga escala. Altruísmo para salvar vidas? Certamente. Vontade de não ficar de fora na partilha do bolo? Com certeza.

ESTADOS INVESTEM

Mais de um ano depois de detetados os primeiros casos de ébola na Guiné-Conacri, muitos se interrogam porque é que uma doença conhecida há mais de 40 anos não tem ainda vacina nem tratamento eficazes. A resposta mais óbvia seria dizer que o ébola nunca foi uma doença ‘rentável’ para a indústria farmacêutica, mas a realidade é um pouco mais complexa.

É que, até ao presente surto, apenas tinha havido epidemias de curta duração e com poucas centenas de casos confirmados. "Não se consegue encontrar a cura para a doença sem testar medicamentos em pessoas que sofram dessa doença", lembra Bernard Munos, consultor da indústria farmacêutica e colunista do site Forbes.com.

Carlos Moreno, professor da Universidade de Emory, em Atlanta, nos EUA, explica à ‘Domingo’ que o desenvolvimento de drogas inovadoras nem sempre resulta da iniciativa da indústria farmacêutica. "Os governos têm de investir na investigação.

As grandes farmacêuticas, que são as que têm condições de produzir em larga escala, só avançam para grandes ensaios clínicos quando uma descoberta lhes dá garantias de retorno. O investimento público nesta área baixou muito, e isso condiciona o desenvolvimento de novas drogas."

A União Europeia anunciou o investimento de 24 milhões de euros, canalizados para empresas que investigam drogas para travar o vírus do ébola. As autoridades americanas e canadianas investem também, quebrando um ciclo de anos de contenção de custos. Não será agora por falta de dinheiro que a epidemia do ébola não será travada, mas, apesar da boa vontade, os especialistas temem que seja tarde demais para evitar milhares de mortes.

DILEMAS DE CANCRO

A indústria farmacêutica é, há muito, uma das mais lucrativas do Planeta. Uma descoberta inovadora garante ao fabricante 20 anos de exclusividade da patente, que lhe permite ter o monopólio da comercialização. O cancro, ou antes, os vários tipos de cancro são uma das áreas que têm conhecido um maior desenvolvimento nos últimos anos. Há hoje tratamentos no mercado que conseguem prolongar por meses, e até anos, a vida dos pacientes. Mas a custos exorbitantes.

"Conheço casos de pessoas que vão ao estrangeiro comprar medicamentos cujo tratamento completo chega a custar 60 mil euros", conta o médico Vítor Veloso, vice-presidente da Liga Portuguesa contra o Cancro. Muitas destas drogas não estão ainda disponíveis em Portugal. Vítor Veloso diz que as razões são económicas:

"Os pedidos de autorização ficam parados no regulador [o Infarmed], porque há instruções para não os aprovar. O Estado não quer aprová-los porque os custos com as comparticipações seriam muito elevados. E não se quer permitir a venda ao público sem comparticipação para não criar situações de desigualdade no acesso ao medicamento."

O especialista diz que o Estado "deveria negociar diretamente com os fornecedores, de modo a obter economias de escala e baixar os preços, como se conseguiu fazer no caso da vacina contra o Vírus do Papiloma Humano [HPV]".

Contactado pela ‘Domingo’, o Infarmed explica o processo de avaliação das novas drogas: "Para todos os novos medicamentos da área da oncologia, a autorização para comercialização é dada por via centralizada ao mesmo tempo para todo o espaço europeu. No entanto, os hospitais do SNS só podem adquirir o medicamento após deferimento do pedido de avaliação prévia."

O Infarmed duvida da eficácia de alguns dos medicamentos que esperam autorização: "Muitos dos medicamentos da lista apresentada suscitam ao Infarmed dúvidas quanto ao caráter inovador e ao perfil de custo-efetividade. Nestes casos, podem ser solicitados estudos adicionais, ficando o processo suspenso por seis meses. Os processos de avaliação de financiamento são complexos, exigindo a negociação constante com as empresas (...), que envolvem muitas vezes várias reuniões  até se chegar a um acordo."

Nos casos de cancro, o preço dos novos medicamentos traz de volta a velha discussão sobre até que ponto é legítimo gastar avultadas quantias de dinheiro para prolongar por pouco tempo a vida de doentes incuráveis. Vítor Veloso é sensível ao argumento. "Há muitas drogas inovadoras no mercado que são um logro. Prolongam a vida por pouco tempo ou deixam os doentes sem qualidade de vida. Mas existem também medicamentos que, comprovadamente, permitem aos doentes viver pelo menos por mais seis meses sem sofrimento. Esses devem ser comparticipados".

GUERRAS SEM NEXO

O professor americano Carlos Moreno escreveu recentemente um artigo na Reuters com um título inquietante: ‘Como as grandes farmacêuticas estão a atrasar a pesquisa do cancro.’ Moreno explica o seu ponto de vista à ‘Domingo’. "Têm sido desenvolvidos estudos que mostram que o uso combinado de diferentes drogas de diferentes laboratórios produzem resultados muito encorajadores.

Mas há uma grande resistência das empresas que detêm as patentes em aceitar que os seus produtos possam ser usados dessa forma, pois isso põe em causa a perspetiva dos lucros de cada marca. As questões legais sobrepõem-se ao princípio de dar a cada doente o melhor tratamento possível."

O especialista defende que os estados não se podem demitir da função de estimular a investigação científica e aponta um caminho simples, mas muitas vezes esquecido. "Às vezes estamos tão preocupados com a inovação que nos esquecemos de que há milhares de drogas cuja patente já expirou e que podem ser usadas para fins diferentes daqueles para o qual foram originalmente concebidas. Seria um papel dos governos estudar a aplicação de medicamentos genéricos em novas áreas de tratamento, porque isso permitiria poupar muitos milhões."

DROGAS PERSONALIZADAS

A indústria farmacêutica mudou de estratégia nos últimos anos. Se até aqui o objetivo era produzir drogas que pudessem ser usadas por uma grande quantidade de doentes em todo o Mundo, agora aposta-se na especialização – drogas feitas à medida de patologias específicas, que obrigam a tratamentos caros e demorados.

A mudança tem muito a ver com a queda de patentes. Entre 1996 e 2012, o medicamento Lipitor, fabricado pela Pfizer, gerou um valor de vendas de 100 mil milhões de euros. O remédio para o reduzir o colesterol tornou-se no mais lucrativo da história. Quando a patente expirou, os genéricos tomaram conta do mercado.

A estrela do momento no mundo farmacêutico chama-se Humira. Foi o primeiro medicamento aprovado pela FDA (autoridade americana do medicamento) que tem origem exclusivamente na engenharia de DNA humano. Usado para tratar a artrite reumatoide, ou a doença de Crohn, é o mais bem-sucedido medicamento das chamadas drogas biológicas e está à venda em Portugal há cerca de 10 anos.

Segundo o site da consultora First World Pharma, só em 2013 o Humira gerou receitas de 8,3 mil milhões de euros em todo o Mundo, apesar de haver casos de graves complicações de saúde de doentes que sofreram efeitos secundários. De acordo com os dados da consultora internacional IMS Health, os medicamentos mais vendidos em Portugal são os que tratam doenças do aparelho cardiovascular, sobretudo problemas de hipertensão.

Os dados disponíveis indicam o preço pago pelas farmácias aos armazenistas – mais de 203 milhões de euros em 2013. Segundo os mesmos dados, o mercado ambulatório (fora dos hospitais) gerou aos armazenistas vendas de 1,8 mil milhões de euros. Segundo os dados do Infarmed, os gastos para o Sistema Nacional de Saúde ascenderam a 672 milhões de euros entre janeiro e julho deste ano, mais dois milhões de euros do que no mesmo período do ano passado.

SIDA CUSTA CARO

Também no combate ao VIH/Sida, a indústria tem apresentado soluções inovadoras. Tanto que a sida é há muito encarada como uma doença crónica, ainda que obrigue os doentes a deslocarem-se aos hospitais para receberem os medicamentos que mantêm o vírus sob controlo. Também neste caso os custos dos medicamentos pesam nas contas do Estado, até porque a medicação antirretroviral é distribuída gratuitamente nas farmácias hospitalares. O custo para o Estado é de cerca de 200 milhões de euros por ano.

Outro caso recente que saltou paras as notícias foi a negociação feita para o uso em Portugal de um novo medicamento para tratar a hepatite C, em que o próprio Infarmed interveio para negociar a descida do preço com a farmacêutica que o fabrica. Ficou acordado um gasto de 20 milhões de euros por ano.

O valor possível, para um tratamento que chegou a ser proposto ao preço de 48 mil euros por doente durante três meses. O próprio ministro da Saúde considerou o valor "imoral" Palavra que não faz grande mossa à indústria.

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